Em documento sigiloso, vice-PGR Lindôra Araújo dispara contra Moraes e PF

 

Responsável por inquéritos que envolvem deputados, senadores e até o ex-presidente Jair Bolsonaro com a disseminação de notícias falsas e prática de atos antidemocráticos, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), há quatro anos vem colecionando uma legião de admiradores e desafetos. Para o primeiro grupo, o dos admiradores, a atuação do magistrado evitou um retrocesso político de consequências imprevisíveis, especialmente depois do dia 8 de janeiro, quando criminosos invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Para os críticos, as decisões do ministro têm atropelado sistematicamente garantias constitucionais em nome de um suposto esforço em preservá-las. Um documento sigiloso a que VEJA teve acesso mostra que esse embate deve ganhar um capítulo explosivo nas próximas semanas.

Nele, a Procuradoria-Geral da República insinua que Alexandre de Moraesautorizou procedimentos ilegais, decretou prisões sem fundamento e tentou promover o que na Justiça se chama de “pesca probatória”, uma diligência autorizada sem um fato que a justifique, tendo como objetivo real colher alguma prova aleatória de um crime. Como se sabe, a Polícia Federal prendeu no início de maio o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro. A ação, determinada por Alexandre de Moraes, ocorreu no bojo de uma investigação que apurava a participação do militar num caso de falsificação de cartões de vacinação. Na ocasião, também por determinação do ministro, foram apreendidos os telefones dele e da esposa. Nos aparelhos, foram encontrados documentos que delineavam o planejamento de um golpe de Estado e mensagens de texto com pregações golpistas. Para a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, que assina o documento, essa sequência de eventos foi uma típica “pescaria” por parte do ministro.

Segundo a procuradora, não havia nenhuma justificativa plausível para a prisão preventiva do ex-ajudante de ordens e de outros dois ex-auxiliares de Jair Bolsonaro também envolvidos no caso das carteiras de vacinação, Max Moura e Sérgio Cordeiro. “Os elementos apontados são por demais incipientes a recomendar quaisquer diligências ou medidas em face dos investigados, sob pena de se validar a pesca probatória, à semelhança de outras investigações em curso no âmbito do Supremo Tribunal Federal”, escreveu Lindôra. Revelada por VEJA há duas semanas, a perícia nos celulares encontrou, entre vários documentos, o roteiro para um golpe de Estado que previa a anulação das eleições, a nomeação de um interventor militar, a deposição de ministros do STF e a convocação de um novo pleito caso Jair Bolsonaro fosse derrotado. Braço direito do ex-presidente durante os quatro anos de governo, Cid está preso preventivamente há dois meses.

Proativo e firme em suas decisões, Alexandre de Moraes tem sido alvo de críticas por tocar inquéritos que miram personagens ligados ao bolsonarismo. Convencido de que havia um movimento orquestrado de deslegitimação da Justiça, o Supremo abriu, em 2019, uma investigação para apurar a disseminação de fake news e ofensas à honra dos ministros. Com o passar do tempo, foram instaurados novos inquéritos que tinham algum tipo de afinidade com a ação original — milícias digitais, atos antidemocráticos e o quebra-quebra de 8 de janeiro —, que também ficaram sob a relatoria de Moraes. Na ofensiva contra o ministro do Supremo, Lindôra insinua que Alexandre inflou o caso de Mauro Cid com episódios estranhos ao processo, como uma reportagem que mostra que o ex-ajudante de ordens pagava despesas pessoais da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, o que não teria nada a ver com a falsificação dos cartões de vacinação. O objetivo, segundo ela, seria ampliar o raio de suspeição sobre o antigo auxiliar de Bolsonaro e “criar um link com a prática de delitos financeiros, envolvendo o círculo social de parentes do ex-chefe do Poder Executivo”.

Numa defesa absolutamente atípica de um acusado, algo raro por parte do Ministério Público, Lindôra Araújo também aponta deslizes procedimentais que, em sua avaliação, sugerem precipitação de Moraes em imputar responsabilidades golpistas a personagens ligados a Bolsonaro. Ela reclama de o ministro ter autorizado a análise do e-mail pessoal de Mauro Cid sem um pedido formal da Polícia Federal, enumera a falta de formalização de atos processuais e questiona a forma como os investigadores teriam concluído que um golpe de Estado havia sido cogitado nos estertores do governo passado. Em duras palavras, a procuradora desqualifica completamente o relatório produzido pela Polícia Federal. “Trata-se de redação de cunho crítico que até poderia ser encontrada em mesas de cursinhos preparatórios para o vestibular”, provoca ela, referindo-se aos rascunhos encontrados no telefone de Cid.

 

No documento dirigido ao ministro Alexandre de Moraes, a procuradora ressalta ainda que, ao decretar a prisão do ex-ajudante de ordens e de dois ex-as­sessores de confiança de Bolsonaro, o ministro flerta com a “prisão para averiguação”, uma prática proibida amplamente utilizada no regime militar em que alvos eram detidos aleatoriamente em locais públicos e encaminhados para uma unidade policial. Lindôra também critica as conclusões tiradas a partir das mensagens encontradas no celular do coronel. Afirma que elas se resumem a “mero diálogo entre pessoas comuns, desprovidas de conhecimento jurídico ou político suficiente para arquitetar um golpe de Estado”. Os documentos e as mensagens são considerados pelos investigadores como as evidências mais contundentes até agora sobre a suspeita que paira em relação ao envolvimento do ex-presidente no plano golpista.

Numa visão diametralmente oposta à gravidade dos fatos, a procuradora considera que os diálogos estão longe de representar a ameaça vislumbrada por Alexandre de Moraes e não passariam de “uma simples troca de informações apenas e tão somente entre os interlocutores, sem contato com qualquer pessoa com condições de executar” um atentado à democracia. “São posturas especulativas que poderiam ser encontradas nos dispositivos móveis de grande parte da população brasileira, sob o contexto de intensa polarização do debate político à época das eleições de 2022”, diz ela sobre as conversas recuperadas, que incluem apelos do coronel Jean Lawand Junior por uma ordem do presidente da República para a deflagração da intervenção golpista. Lotado em uma subchefia do Esta­do-Maior do Exército, Lawand prestou depoimento na CPI do 8 de Janeiro na última terça-feira e explicou que as mensagens que encaminhou a Mauro Cid, então ajudante de ordens da Presidência da República, nada mais eram que resultado do medo de “convulsão social” após a derrota de Bolsonaro. A explicação, por óbvio, não convenceu ninguém.
De perfil conservador, Lindôra Araújo era (até aqui pelo menos) braço direito do procurador-geral Augusto Aras. Nos últimos anos, partiram de sua mesa várias decisões favoráveis a Jair Bolsonaro, a aliados e ao governo. Recentemente, a procuradora isentou o ex-presidente de participação na fraude dos cartões de vacinação, quando a polícia descobriu que Cid havia falsificado o certificado de vacina do chefe contra a Covid-19. Designada para atuar no caso do ex-ajudante de ordens, ela já havia sido contra a etapa mais decisiva da investigação — a determinação expressa do ministro para prender o tenente-coronel, medida que, na avaliação dela, foi um exagero. Na peça endereçada a Moraes, ela pede, mais uma vez, a liberação de Mauro Cid e dos outros dois assessores, argumentando que a prisão preventiva não se sustenta, considerando-se que “não há nos autos indícios concretos de que voltarão a delinquir”, criticou.

Nenhuma das considerações de Lindôra Araújo precisa ser acatada por Alexandre de Moraes — e provavelmente não serão. Mesmo no entorno do militar, os pedidos inseridos no mais duro libelo contra a atuação do ministro são considerados otimistas demais. E existe uma razão evidente para isso. Sob os olhos de Moraes, Mauro Cid, seus documentos, suas mensagens e, principalmente, seus segredos ainda não revelados continuam sendo o caminho mais promissor para punir os golpistas.

Todos eles.

Deu na Veja

 

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