Americanas: ex-diretor diz que quis parar fraude na pandemia, mas que foi impedido; veja delações

Foto: Pedro Kirilos / Estadão

Era 2020 quando o ex-diretor financeiro da Lojas Americanas, Marcelo da Silva Nunes, viu os resultados positivos da empresa e chegou à conclusão de que seria possível diminuir o nível de fraudes. A iniciativa, no entanto, teria sido abortada quando os resultados da companhia foram comparados com o crescimento maior dos rivais do setor. A fraude continuou para não atrapalhar a imagem de sucesso empresa. Esse é um dos detalhes dos depoimentos de Nunes, um dos dois ex-executivos da empresa que fecharam um acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal (MPF).

Em nota, a Americanas afirmou que “reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes”. A defesa de Miguel Gutierrez, ex-CEO da varejista, afirma que o executivo “jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que vem colaborando com as autoridades”. O Estadão tenta contato com os demais ex-diretores investigados no caso.

Além de Nunes, a ex-chefe da controladoria da B2W e da Americanas, Flávia Pereira Carneiro Mota, também decidiu colaborar com as investigações. A B2W é a divisão de comércio eletrônico responsável pelos sites da Submarino e da Americanas.com. Flávia revelou ao investigadores que soube da fraude assim que chegou à empresa, em 2007, e alertou um superior, que teria mandado deixar tudo como estava a fim de não prejudicar os preços das ações da Americanas na Bolsa de Valores, após a fusão com a Submarino, em 2006.

As declarações de Nunes e de Flávia revelam como as fraudes foram realizadas na empresa de varejo durante mais de uma década. Os depoimentos serviram de base para o inquérito que resultou na Operação Disclosure, da Polícia Federal (PF), que cumpriu 15 mandatos de busca e apreensão nas casas de suspeitos de participar de esquema de falsificação dos balanços da varejista.

De acordo com a PF, os dois começaram a ser ouvidos em novembro de 2023. Inicialmente, os depoimentos ocorreram na sede do MPF, no Rio, e, posteriormente, foram realizados na Superintendência da PF no Estado, com a participação dos auditores da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que auxiliaram os investigadores decifrando aspectos técnicos do caso.

Segundo o delegado André Gustavo Veras de Oliveira, em razão da complexidade do caso, os depoimentos dos dois colaboradores se estenderam até o começo deste ano. No caso de Nunes, “o completo esclarecimento dos fatos só ocorreu” com o depoimento de 26 de janeiro. Já no caso de Flávia, isso aconteceu em 30 de janeiro. De acordo com o delegado, os dois colaboradores apresentaram mais de 300 documentos que foram juntados à investigação.

Ainda de acordo com o responsável pelas investigações, os documentos trazidos por Flávia ajudaram a formar o quadro sobre a suposta manipulação de mercado praticada por ex-diretores da varejista. Segundo ele, “os envolvidos realizaram manobras fraudulentas destinadas a elevar a cotação das ações das Americanas, com o fim de obter vantagem indevida através do recebimento de bônus e outras vantagens financeiras, conforme se verifica através do arquivo ‘verdes e vermelhos’”.

Flávia explicou aos investigadores que os fraudadores usavam as “expectativas do mercado” para enganar os investidores. Ela contou: “Havia arquivo chamado ‘verdes e vermelhos’ ou ‘estimativa de analistas’, que era a expectativa dos analistas de mercado preparado pelo RI (equipe que cuidava da relações com investidores) com a expectativa de todos esses analistas, e, quando estes previam um porcentual de crescimento, a diretoria ainda mexia no resultado para não frustrar as expectativas do mercado”.

Em sua delação, a colaboradora afirmou que “havia uma expectativa de mercado para que a cotação das ações chegasse a tal patamar, e esta expectativa era atingida com base nos resultado apresentados pelas Americanas”. Ela conclui: “Quando o resultado não atendia a expectativa do mercado, a diretoria (da empresa) fazia as modificações no resultado para atender essa expectativa”. Assim, os envolvidos na fraude ganhavam bônus cumprindo as metas financeiras da empresa bem como se beneficiavam com a valorização das ações que detinham da varejista.

Ainda durante seus depoimentos à PF, Flávia entregou mensagens que trocou com Carlos Eduardo Rosalba Padilha, então diretor de Relações com Investidores da Lojas Americana. Uma delas se tratava de uma conversa mantida em 2018, na qual Padilha afirmaria para Flávia: “Fabien (Picavet, diretor executivo de Relações com o Investidor) me retornou dizendo que não está bom, margem, resultado financeiro e lucro. Ele te falou isso? A ideia de vocês sentarem é pra ajudar”. De acordo com o delegado, as mensagens de Padilha mostravam “a demanda por números falsos que atendessem melhor à expectativa dos investidores”.

Em outro trecho da delação, Flávia conta quais os números eram importantes para a dinâmica das fraudes na empresa. A evolução do capital de giro em relação aos períodos anteriores de divulgação era uma dessas métricas “bem importantes para a Lojas Americanas”. De acordo com o relato dela à PF, havia um acompanhamento mensal.

Nos trimestres, principalmente, Flávia receberia de Padilha a meta a ser perseguida para a divulgação de resultados. Além disso, havia uma versão para o Conselho de Administração e outra para o mercado. Dois integrantes da direção da empresa enviavam as sugestões para as notas explicativas de despesas por natureza e resultado financeiro, segundo Flávia, a pedido de Padilha. É o que mostrariam outras mensagens de WhatsApp de Padilha para a colaboradora, entregues à PF.

Flávia contou também que, ao entrar em 2007, na B2W, realizou “uma prática comum a todo contador” que começa em uma empresa: “fez uma checagem no sistema para verificar se os números estavam todos corretos”. De acordo com sua delação, “já nesse momento”, ela “identificou inconsistências, e gerou uma planilha apontando essas irregularidades”. Naquela época, segundo ela, havia três pessoas terceirizadas na contabilidade. Por isso, ela achou que os erros eram resultado de negligência da contabilidade, já que “antes da fusão com Submarino, em 2006, a Americanas.com era uma empresa de capital fechado”.

É aí que Flávia diz ter recebido a primeira ordem de um superior para fazer vista grossa. Ela conta que conversou com Padilha sobre essas situações e ele “pediu para resolver esse problema ‘em doses homeopáticas’, já que a empresa iria abrir o capital, e não poderiam dar um baque no resultado logo nesse momento”. De acordo com ela, na época, as irregularidades eram praticadas em volume “muitíssimo inferior ao que passou a ser praticado nos últimos anos”. Aos policiais federais, Flávia apresentou uma planilha com a evolução da fraude.

Ela disse então aos investigadores: “O orçamento era uma meta a ser atingida, e não refletia a realidade. Essa meta era sempre baseada no ano anterior, que também não era real, e isso passou a virar uma bola de neve”. Flávia contou que “passou a se desesperar, porque nitidamente não era possível chegar nesses orçamentos, mas eles queriam sempre garantir esse crescimento constante”.

A colaboradora afirmou ainda que, a partir de dezembro de 2017, o resultado aprovado pelo CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, era compartilhado por ela com três outros funcionários. Flávia entregou e-mails para demonstrar a dinâmica. Segundo ela, tudo era do conhecimento da direção. “Inclusive era de conhecimento do Miguel Gutierrez, conforme se verifica nas mensagens trocadas entre a colaboradora Flávia Carneiro e Thimoteo Barros (ex-diretor operacional a B2W e ex-diretor-presidente das operações físicas da Americanas)”, escreveu o delegado André Gustavo Veras de Oliveira.

A delação de Nunes

Além dela, os policiais federais fecharam uma delação com Nunes. Ele informou que, nas reuniões com a auditoria (KPMG), sempre se fez tudo para esconder as fraudes dos auditores, e “o processo de fechamento de resultado de final de ano era sempre muito traumático porque tinham que ser cometidas várias fraudes para esconder da auditoria”.

Além disso, a auditoria pedia para a área contábil da Americanas as cartas de verbas de propaganda cooperada (VPC), que são verbas em dinheiro ou em produtos ofertadas por grandes fabricantes que querem aumentar as suas vendas em alguma varejista. Mas a área contábil, por sua vez, pedia para a área de suporte comercial em que Nunes trabalhava e, “simplesmentem não havia diversas cartas”. Elas, então, eram criadas a partir de modelos de cartas de VPC antigas.

Algumas vezes, segundo ele, a área comercial teve de entrar em contato com os fornecedores para corroborar essas informações e houve pendências, mas “como o valor era baixo em relação ao montante total”, elas acabaram “passando e sendo aprovado o processo de auditoria”. De acordo com o colaborador, “os fornecedores estavam sendo enganados” até onde ele sabia. Isso porque não tinha consciência do que estavam assinando quando corroboraram as cartas de VPC. “Eles não tinham noção que estavam sendo envolvidos numa grande fraude”, disse o delator.

Segundo ele, a criação das cartas falsas “tomava como base as cartas verdadeiras”. Ele informou também que a cultura empresarial existente nas Americanas era a de “não haver mudanças bruscas no orçamento, de não se falar em coisas ruins ao mercado, de não terem resultados ruins”. “Era uma cultura empresarial muito forte que impunha a todos os funcionários essas obrigações”, contou.

Nunes apresentou ainda à PF um e-mail que encaminhou a Miguel Gutierrez contendo o arquivo “Histórico Financeiro 2013-2022″. O documento indica que os expedientes fraudulentos foram adotados ao menos ao longo do dez anos, entre 2013 e 2022, indicando os valores de “Carta B” e “VPC Fornecedor B” ao longo dos anos, bem como os saldos das operações de financiamento não contabilizadas como dívida, intituladas “Saldo AF/Outros”.

O mesmo documento também contém um gráfico que ilustra a evolução do financiamento da companhia por meio das operações de chamado risco sacado ao longo dos anos. O documento indica que, no fim do primeiro semestre de 2022, havia um saldo consolidado superior a R$ 20 bilhões (mais precisamente de R$ 20,815 bilhões). No ano de 2013 inteiro, esse saldo havia ficado em R$ 1,298 bilhão.

Em um dos pontos mais reveladores do depoimento, Nunes contou ainda que houve uma oportunidade para a empresa cessar com as fraudes e acertar os seus balanços. Era 2020. Em razão da pandemia, o resultado das operações digitais passou a ser muito bom. “A partir de março ou abril de 2020 foi uma oportunidade de fazer um Ebitda (lucro operacional) bom, e que esse foi um período em que se aproveitou para aumentar as margens dos produtos, para o resultado divulgado se aproximar dos números da realidade. Tanto que a quantidade de lançamentos irreais foi baixa”, informou.

Entretanto, a B2W começou a crescer menos que os concorrentes. Quando Nunes tentou nessa época fazer os ajustes buscando parar as fraudes, “e que nessa época conseguiram reduzir muito”, tal redução fez com que a B2W passasse a crescer menos que os concorrentes. Então, segundo ele, a direção da empresa reagiu. “Passou a surgir uma necessidade de crescimento, que o Márcio Cruz (diretor-presidente da B2W) em setembro voltou a cobrar a necessidade de crescimento, daí tiveram que retornar o volume das fraudes contábeis.” O resultado, disse Nunes, é que, naquela época, as fraudes contábeis escalaram.

O que dizem a empresa e os ex-diretores

Em nota, a Americanas afirmou que “reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes”. A empresa diz ainda acreditar na Justiça e “aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos”.

A defesa de Miguel Gutierrez afirma, também em nota, que o ex-CEO “jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que vem colaborando com as autoridades, prestando os esclarecimentos devidos nos foros próprios”.

A KPMG no Brasil afirma que, por motivos de cláusulas de sigilo e regras da profissão, está impedida de se manifestar sobre casos e/ou resultados de trabalhos envolvendo clientes ou ex-clientes da firma.

A reportagem do Estadão busca contato com a defesa dos ex-diretores da Americanas Marcelo da Silva Nunes, Flávia Pereira Carneiro Mota, Carlos Eduardo Rosalba Padilha, José Timotheo de Barros e Fabien Picavet. O espaço está aberto para manifestação dos investigados.

Deu no Estadão

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