Segurança pública: estados firmaram quase R$ 1 bi em contratos sem licitação

Foto: Arte/Gazeta do Povo

As 27 secretarias estaduais da Segurança Pública no país firmaram quase R$ 1 bilhão em contratos para produtos, bens ou serviços sem licitações. Há ao menos uma centena de compras com valor unitário superior a R$ 1 milhão. Em alguns estados, a Segurança Pública contratou mais pela modalidade sem licitação.

Os dados se referem ao ano de 2023 e englobam processos iniciados no ano anterior, cujas informações foram obtidas por meio de um trabalho de mineração jornalística com o auxílio da ferramenta de pesquisas Pinpoint, do Google, em uma parceria com a Gazeta do Povo*.

A estimativa calculada não é um processo de “demonização” dessa modalidade direta de aquisição, analisa o presidente da Companhia Brasileira de Governança (CBG), Paulo Alves, mas serve como um alerta à responsabilidade com os recursos públicos e à necessidade de planejamento das administrações em programar certames que possam estimular disputas, contratar por preços mais vantajosos e com melhor qualidade, garantindo a impessoalidade e a isonomia no processo.

O especialista da CBG destaca o Artigo 37 da Constituição Federal, que refere-se à exigência para que o trâmite corriqueiro seja a licitação – e apenas a exceção por contratação direta. As hipóteses de afastamento da licitação por meio da contratação direta em dispensa de licitação e inexigibilidade de licitação deveriam ser excepcionais e somente ocorrer mediante previsão legal.

“Pela falta de planejamento e da utilização de elementos de governança, a exceção se transforma na regra. A gente muito mais se dedica a fazer dispensas de licitação e inexigibilidades que deveriam ser exceção do que a regra, que é a licitação. Com a disputa, a licitação traz ganhos: a começar pelo bem de escala, a competitividade do mercado fazendo que se receba objetos de maior qualidade e de menor preço, sem contar o elemento da transparência pública que é ampliada quando se faz uma disputa”, afirma.

Alves acrescenta que a contratação direta é ferramenta útil ao poder público em situações de emergência, quando se trata de objetos de baixo valor para os quais uma licitação poderia onerar de forma demasiada o produto ou o serviço. Ou, ainda, quando não há concorrência ou um mesmo prestador para determinado produto ou serviço.

“Em casos assim, a dispensa será um caminho adequado, a exemplo de quando se contrata um profissional para um serviço técnico especializado em que não há a possibilidade de comparar ou contratar outro profissional. As possibilidades de contratação direta são muito importantes à consecução dos objetivos da administração pública”, completa ele.

Aquisições indiscriminadas com dispensa ou por inexigibilidade de licitação, marcadas pela falta de concorrência, podem aumentar riscos à corrupção, alerta a diretora de programas do Transparência Brasil Marina Atoji. Ela pontua que a prática coloca em xeque a eficiência da gestão pública e os princípios que norteiam a República. Apesar de legítimas e previstas em leis, essas escolhas aumentam brechas para favorecimento de empresas, superfaturamento e desvios de recursos, colocando em risco o dinheiro do contribuinte, aponta a especialista.

A reportagem da Gazeta do Povo levantou que seis estados responderam por mais da metade de todas as aquisições sem licitação analisadas no período: R$ 540 milhões. Foram eles Mato Grosso, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais.

Compras sem licitação foram de material de expediente a sofisticados softwares de investigação

Na varredura das cerca de 2 mil páginas de documentos, com o auxílio do Pinpoint, foi possível identificar milhares de aquisições sem disputas ou concorrência. Há ao menos uma centena de contratos com valor unitário superior a R$ 1 milhão.

Foi o caso de Piauí e de Minas Gerais. Neste último, as compras com dispensa de licitação somaram R$ 33,8 milhões no ano passado. De acordo com o portal da transparência do governo mineiro, as compras com concorrência somaram R$ 23,8 milhões no mesmo período.

Por todo o Brasil, a maioria das secretarias da Segurança Pública têm mais aquisições relacionadas a “sistemas de informação: internet, equipamentos eletrônicos e tecnologia da informação”, do que compras referentes a armas, munições e equipamentos de proteção individual para os efetivos da polícia.

Em São Paulo, um processo de inexigibilidade de licitação de pouco mais de R$ 9 milhões contemplou a renovação da licença de um software. O contrato foi identificado após formulação de pedido das aquisições por inexigibilidade de licitação pela Lei de Acesso à Informação (LAI), uma vez que o processo não estava disponível para livre consulta no portal da transparência do governo estadual.

A Segurança Pública paulista afirmou que o contrato foi firmado na modalidade de inexigibilidade de licitação com a Prodesp (Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo) no dia 2 de dezembro de 2020 e o término ocorreu em 1º de dezembro de 2023, quando houve a renovação pela atual gestão. “A dispensa de licitação ocorreu em conformidade com a Lei Federal de Licitações e Contratos Administrativos, a qual possibilita a inexigibilidade em casos de serviços técnicos especializados”, justificou.

Segundo a pasta, foram contratados serviços técnicos e especializados de tecnologia da informação para migração, gerenciamento, desenvolvimento e manutenção de aplicativos do sistema utilizado pelas forças policiais para leitura de placas de veículos. “A tecnologia promove a integração das câmeras de monitoramento em rodovias e cidades para a realização dessa atividade, que permite identificar veículos com queixa de furtos e/ou roubos, apropriação indébita e estelionato, bem como proprietários de automóveis ou motocicletas que constem como desaparecidos ou procurados pela Justiça”, completou o órgão.

A secretaria estadual considerou ainda que, como resultado, apenas em 2023 “o sistema contribuiu com a recuperação de mais de oito mil veículos, apreensão de 99 armas, prisão de 743 pessoas e o encontro de cinco desaparecidos. Também foram retiradas das ruas mais de 10 toneladas de drogas”.

Em Goiás, a Segurança Pública adquiriu um sistema automatizado de identificação balística de quase R$ 7 milhões sem licitação. A reportagem solicitou informações sobre o processo, utilização, tempo de vigência do contrato e quem foi o ente contratado, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.

Em Minas Gerais, uma única aquisição sem licitação identificada como “conexão de alta disponibilidade à internet” somou R$ 8,7 milhões. A Secretaria da Segurança Públicva tampouco retornou os contatos da reportagem para detalhar o processo.

Além de dezenas de compras com as mesmas características, há aquisições que vão desde materiais básicos de expedientes, reparos simples em estruturas físicas e mobília para atendimento ao público até contratos milionários para cursos, capacitações e preparação de concursos. Um exemplo é o da Polícia Militar no Rio de Janeiro, que em três contratos somou mais de R$ 14 milhões. Dois deles com objetos idênticos e com poucos dias de diferença (um deles dia 1º e outro em 6 de dezembro), prevendo contratação de banca examinadora e realização de concurso, a R$ 4,8 milhões cada.

A secretaria estadual afirmou à Gazeta do Povo que se tratava do mesmo contrato, apesar de lançamentos duplicados. Indagada sobre as datas diferentes nos processos, a pasta não se posicionou. A empresa contratada, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), também foi procurada, mas não se manifestou.

Também no Rio houve registro de 102 processos sem licitação para conserto, reparos e manutenção da frota oficial, sob justificativa da PM de que existe amparo e previsão legal para as contratações nessas modalidades. Juntas, somaram mais de R$ 30 milhões em 2023.

“Tecnologia” concentrou 1/3 das compras sem licitação na área da segurança

Quase um terço das aquisições das secretarias da Segurança Pública sem licitação no último ano foi para contratos de aquisição de produtos identificados, na maioria das vezes, simplesmente como “informática, tecnologia, sistemas de informação, acesso à rede de internet ou em programas ligados à tecnologia”. Essa categoria de compra se aproxima dos R$ 350 milhões. Na outra ponta houve menos de 100 registros de compras de armas e munições que, pelos dados analisados, não somaram R$ 80 milhões.

Alguns destes sistemas de informação são considerados programas espiões, cuja má utilização serve para monitoramento de cidadãos comuns ou em atos de perseguição civil ou política, conforme alerta do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em 2023, operação da Polícia Federal indicou o uso de um desses softwares para monitoramento de autoridades políticas, do judiciário, figuras públicas e jornalistas pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Na época, evidenciou-se que ao menos nove estados utilizavam-se dos mesmos sistemas ou similares para seus serviços de inteligência. Muitos mantêm contratos ativos e com renovações periódicas.

O Tribunal de Contas da União (TCU) afirmou à reportagem da Gazeta do Povo que, apesar de não ser considerada ilegalidade nas compras sem licitação, casos suspeitos precisam ser denunciados aos órgãos competentes. O volume de representações ao TCU é elevado. “São mais de mil [denúncias] recebidas todos os anos”, considerou o órgão de fiscalização e controle.

Em ao menos 80% dos 27 portais estaduais analisados, os dados não são de fácil acesso, os campos de busca não são claros e não há padronização das informações. Alguns formulários de contratação estão com dados errados ou incompletos e outros sequer disponibilizam informações que deveriam ser de acesso público, conforme determinam a Lei de Acesso à Informação (LAI) e a Nova Lei de Licitações.

“Essa falta de padronização ou a dificuldade para acesso são mais comuns do que deveriam ser e são observadas por todos. São muitas dificuldades para se chegar às informações, é algo feito para as pessoas que trabalham com administração pública ou conhecem profundamente dela”, disse Marina Atoji, do Transparência Brasil.

Conforme evidencia Marina Atoji, do Transparência Brasil, alguns portais existem para justificar cumprimento de legislação “apenas no sentido de que se tem que publicar os dados e não importa se eles estão usáveis, compreensíveis para todos, dá-se a sensação que estão ali para cumprir tabela”, reforça ela. O Transparência Brasil é um órgão da sociedade civil fundada em 2000 com objetivo de promover transparência e o controle social ao poder público.

A nova Lei de Licitações determina que todos os processos de compra devem constar no Portal Nacional das Contratações Públicas, mecanismo gerenciado pelo governo federal. Porém, a maior parte dos processos analisados pela reportagem da Gazeta do Povo não aparece no site.

Compras sem licitação estavam com dados indisponíveis

Secretarias da Segurança Pública em estados como Piauí, São Paulo, Rio Grande do Norte e Rondônia não disponibilizam as informações de forma clara, de fácil acesso e objetivas na internet. Foram indagados pela reportagem, que também solicitou os dados com base na Lei de Acesso à Informação. São Paulo respondeu via LAI e os demais estados não se manifestaram.

Foi com o cruzamento de informações do Portal Nacional de Contratações Públicas, Secretarias de Estado da Fazenda e pelo Pinpoint que a Gazeta do Povo localizou aquisições, muitas milionárias, tanto no Piauí quanto no Rio Grande do Norte. Em Rondônia, a reportagem buscou informações via Tribunal de Contas do Estado, além do governo estadual, e não obteve retorno dos órgãos.

Na busca pelas informações no portal da transparência do Pará, nenhum dado referente às possíveis compras sem licitação em 2023 foi localizado. À reportagem, a pasta afirmou que não haviam contratos e aquisições nestas modalidades no período. Em buscadores cruzados, considerando todas as contratações do estado em 2023 e com auxílio do Pinpoint, foi identificado um contrato ativo sem licitação – iniciado em 2022 – relacionado à locação de imóvel pelo período de um ano no valor de pouco mais de R$ 900 mil.

“A Lei de Acesso à Informação estabelece os casos em que a informação solicitada pode ser negada, excepcionalmente, por exemplo, quando os dados são sensíveis e o sigilo seja essencial para a segurança da sociedade e do Estado. De qualquer forma, a negativa do pedido de acesso à informação deve ser bem fundamentada e indicar a norma em que está prevista”, enfatiza o TCU.

O TCU considera que as secretarias de estado deveriam, obrigatoriamente, dispor e tornar públicos dados e informações “em estrita observância ao que dispõe a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) e a lei geral de licitações em contratos que rege a contratação (Lei 8.666/1993 ou Lei 14.133/2021)”.

Governança pública: determinação pela Nova Lei de Licitações

O presidente da Companhia Brasileira de Governança, Paulo Alves, lembra que é de um bom sistema de governança que vem o alinhamento entre o interesse público e a atuação do estado. “A governança pública tem que funcionar para atender o interesse do cidadão. Ela existe com esse propósito”.

Caracterizada como um conjunto de mecanismos de escuta ativa do interesse do cidadão e transformação em políticas públicas em programas de interesse coletivo, a governança pública no conceito clássico apresentado pelo TCU no seu referencial de governança é o conjunto de mecanismos de liderança estratégia de controle, postos em prática para direcionar, avaliar e monitorar as ações programáticas, as políticas e a prestação de serviços conforme o interesse social.

“Pela governança das contratações, o objetivo é promover mais transparência na administração pública. Ela consta como elemento obrigatório na Lei 14.133 de 2021, a nova lei de licitações. No artigo 11 parágrafo único há um mandamento explícito, claro, inequívoco: a alta administração dos órgãos e entidades da administração devem, portanto, uma obrigação de implementar processos e estruturas de gestão de riscos e controles internos para alinhar as contratações também ao interesse público”, descreve ele.

O mesmo conceito e noção de governança pública precisam estar especialmente focados nas contratações. “A governança é tão importante porque trabalha com uma ferramenta chamada plano de contratações anual, um documento que busca consolidar todas as contratações que o órgão vai realizar em um determinado exercício financeiro e veja que essa ferramenta de planejamento macro foca o planejamento institucional”, reforça o especialista.

Na prática, com planejamento eficiente, muitas compras feitas com o conceito de emergencial – com dispensa de licitação – podem ser incluídas nos calendários normais e corriqueiros de aquisição que passem por processos que garantam mais lisura. “De um exercício a outro você consegue se planejar para fazer licitações, muitas vezes abandonando as contratações diretas, porque se descobre que no contexto de toda a organização e de todo o exercício financeiro vai manejar uma quantidade tão grande de objetos e o valor deles exige, pela força legal, fazer licitação ao invés de uma dispensa de licitação. O próprio princípio do planejamento incide como elemento crucial”, explica Alves.

Deu na Gazeta do Povo

Deixe um comentário

Rolar para cima
× Receba Novidades