Estudo da UFRN revela atraso no tratamento do câncer do colo do útero no Brasil

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A Lei Federal nº 12.732/12 determina que pacientes oncológicas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) comecem o tratamento em até 60 dias após o diagnóstico. No entanto, os dados mostram que esse direito ainda não é plenamente garantido às pacientes do terceiro tipo de câncer mais comum entre as mulheres: o câncer do colo do útero. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima cerca de 17 mil novos casos da doença no Brasil, por ano, para o triênio 2023-2025. E a corrida contra o relógio é fundamental para a cura.

Uma pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos em Epidemiologia do Câncer (Epican), coordenado pelo professor Dyego Souza, do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DSC/UFRN), revelou que menos da metade das mulheres brasileiras com câncer do colo do útero iniciam o tratamento dentro do prazo. O estudo, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e publicado na revista científica internacional BMC Women’s Health (2025) – uma das mais relevantes no campo da saúde feminina – analisou mais de 120 mil casos registrados em hospitais públicos de todas as regiões do país entre 2006 e 2019, e apenas 43% das pacientes iniciaram o tratamento dentro do prazo legal.

Diferenças entre os grupos e desigualdades regionais

Os pesquisadores avaliaram dois grupos de mulheres diagnosticadas com câncer do colo do útero. O primeiro grupo era formado por aquelas sem diagnóstico prévio, ou seja, que descobriram a doença e iniciaram o tratamento na mesma unidade hospitalar. O segundo grupo era composto por mulheres com diagnóstico confirmado, que já sabiam da doença e foram encaminhadas a um centro especializado para dar início ao tratamento.

Os resultados mostram diferenças expressivas. Entre as mulheres sem diagnóstico prévio, 66,7% conseguiram iniciar o tratamento dentro do prazo de 60 dias. Já entre as que chegaram ao hospital com o diagnóstico confirmado, apenas 28,7% começaram o tratamento dentro do limite legal. Essa diferença indica que o percurso entre o diagnóstico e o início do tratamento ainda é um dos maiores gargalos da atenção oncológica no SUS. As pacientes que precisam se deslocar entre diferentes unidades e níveis de atenção enfrentam mais barreiras — burocráticas, logísticas e estruturais — do que aquelas que recebem o diagnóstico e o cuidado no mesmo local.

Além disso, a pesquisa revelou grandes desigualdades regionais. Após a criação da lei, os estados com piores índices de atraso foram Rio de Janeiro (RJ), Pernambuco (PE) e Roraima (RR), enquanto Bahia (BA) e Rio Grande do Norte (RN) mostraram discretas melhoras. Em geral, o Norte e o Nordeste apresentaram os maiores desafios, refletindo desigualdades históricas no acesso à rede de diagnóstico e ao tratamento.

Importância da integração entre os níveis de atenção

O estudo mostra que a lentidão no início do tratamento está relacionada à falta de integração entre os diferentes níveis do sistema público de saúde. A atenção primária, responsável pelos exames preventivos e encaminhamentos iniciais, muitas vezes, não se articula de forma eficiente com os centros de média e alta complexidade, onde o tratamento oncológico é realizado. Essa fragmentação faz com que as pacientes percorram longos caminhos até chegar ao atendimento especializado, o que aumenta o risco de agravamento da doença.

O câncer do colo do útero, quando diagnosticado e tratado precocemente, tem altas chances de cura. Por isso, o atraso representa não apenas um problema de gestão, mas também uma questão de vida e morte. De acordo com os autores, é essencial fortalecer políticas públicas que melhorem o fluxo de pacientes dentro do SUS, garantindo o acompanhamento desde o diagnóstico até o início do tratamento. “O tempo é decisivo para a sobrevida das mulheres com câncer do colo do útero. É fundamental garantir que o direito ao tratamento rápido seja uma realidade para todas”, afirma o professor Dyego Souza.

Navegação de pacientes: um novo caminho para reduzir as desigualdades

Um dos pontos centrais do estudo é a defesa do Programa Nacional de Navegação de Pacientes, criado pelo Ministério da Saúde (MS) em fevereiro de 2025. A proposta do programa é assegurar que pacientes com diagnóstico de câncer tenham acompanhamento contínuo em todas as etapas do cuidado, evitando que se percam no trajeto entre a descoberta da doença e o tratamento efetivo. Na prática, a navegação de pacientes funciona como um sistema de apoio personalizado dentro do SUS. Profissionais treinados, como enfermeiros, assistentes sociais e agentes comunitários, atuam como “navegadores”, ajudando as pessoas diagnosticadas a entender o fluxo do sistema, marcar consultas e exames, organizar documentos e superar barreiras de transporte, distância, comunicação e acesso.

O estudo do Epican destaca que essa iniciativa representa uma mudança significativa na forma de pensar o cuidado em oncologia. Ao acompanhar cada paciente individualmente, o programa contribui para reduzir desigualdades regionais, agilizar o início do tratamento e tornar o sistema público mais humano e resolutivo. Mais do que um diagnóstico da situação atual, a pesquisa oferece subsídios concretos para a formulação de políticas públicas voltadas à equidade, à eficiência e à humanização do cuidado em saúde. Como reforça o estudo do Epican, a rapidez no tratamento não é apenas uma questão administrativa, mas também um determinante de sobrevivência.

O papel do Epican

O Epican atua na produção de evidências científicas sobre câncer e políticas públicas de saúde, com foco na realidade brasileira e latino-americana. O grupo tem contribuído para análises epidemiológicas de grande relevância, abordando desde fatores de risco e prevenção até acesso a diagnóstico e tratamento. O artigo é assinado por Letícia Gabriella Souza da Silva, Paulo Vitor de Souza Silva, Maria Fernanda Dantas Chaves, Ana Camilly da Costa Cruz e Dyego Leandro Bezerra de Souza, todos vinculados ao Epican.

A pesquisa utilizou dados do Integrador de Registros Hospitalares de Câncer (IRHC), base nacional administrada pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), que reúne informações sobre casos atendidos em unidades de alta complexidade oncológica no país. Foram analisados registros de 187 mil casos, dos quais 120.311 preencheram os critérios de inclusão. O trabalho contou ainda com a colaboração de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Inca, da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidad Científica del Sur, em Peru, reforçando o caráter colaborativo e interdisciplinar da pesquisa.

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