BRASÍLIA – A presença em eventos jurídicos realizados no exterior é praxe entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre junho de 2023 e maio deste ano, os magistrados estiveram presentes em ao menos 22 agendas internacionais mapeadas pelo Estadão.
Os encontros, em sua maioria na Europa, envolvem fóruns organizados pela iniciativa privada, seminários acadêmicos e visitas institucionais realizadas pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso. Em nota, a Corte afirma que “não se pode considerar a participação do ministro no evento como um favor feito a ele pelo organizador”. O texto ainda afirma que os magistrados dialogam com diferentes segmentos da sociedade e que, “por essa razão, não há conflito de interesses” (leia mais abaixo).
Dentre os 22 eventos identificados pela reportagem, nove foram organizados ou patrocinados por instituições privadas, incluindo caso em que a empresa patrocinadora possui ações na Corte.
Como revelou o Estadão, o “Fórum Jurídico: Brasil de Ideias”, realizado no final do mês passado em Londres, na Inglaterra, foi patrocinado pela British American Tobacco (BAT) Brasil. A empresa tem ao menos dois processos no STF e é parte interessada em uma ação relatada pelo ministro Dias Toffoli, que participou do evento.
O Banco Master teve um de seus funcionários no Fórum e pagou pela participação do ex-primeiro-ministro do Reino Unido Tony Blair em um painel. A instituição também possui um recurso no STF, este sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.
Outros eventos prestigiados por ministros, como o Fórum Esfera Internacional e o Brazil Economic Forum, do Lide, ambos realizados em 2023, também foram patrocinados por empresas privadas e contaram com a presença de empresários. O encontro organizado pela Esfera levou os ministros Barroso e Gilmar Mendes para a França, em outubro do ano passado. Já o painel produzido pelo Lide, na Suíça, na esteira do Fórum Econômico de Davos, contou apenas com Barroso na condição de presidente do STF.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autoriza a participação de magistrados “em encontros jurídicos ou culturais” promovidos por entidades privadas. A regra prevista em uma resolução de 2013 também permite que os juízes, desembargadores e ministros tenham o transporte e a hospedagem subsidiados por essas entidades.
Outra decisão do próprio CNJ, em 2021, desobrigou juízes de todo o País de informar os respectivos tribunais sobre a participação em eventos. Os dados eram centralizados pelas corregedorias das Cortes em razão de regras impostas pelo Conselho. O Estadão mostrou, em março de 2023, que empresas com causas que somam R$ 158 bilhões foram responsáveis por bancar viagens de ministros no Brasil e no exterior para participar de fóruns e conferências, mas que não havia informações sistematizadas nos tribunais.
Em nota, a Esfera afirmou que “oferece cobertura de despesas de viagem aos painelistas convidados em seus seminários e não paga cachês”. A instituição também apontou que os eventos “são pautados pela total transparência” e que “a escolha dos palestrantes e debatedores é realizada pela relevância da autoridade e notoriedade sobre os temas em pauta”.
Os organizados do Brazil Economic Forum declararam à reportagem que os “palestrantes viajaram a convite do LIDE e, naturalmente, foi oferecido o custeio de transporte e hospedagem”. De acordo com o grupo, “este procedimento foi igual com todos os conferencistas” e não houve “pagamentos de cachê aos expositores em seus eventos”.
“O LIDE – Grupo de Líderes Empresariais é independente, apartidário, multisetorial e multilateral. Há vinte anos, o LIDE realiza eventos periódicos no Brasil e no exterior, estimulando o diálogo entre os setores produtivo, público, acadêmico e a sociedade civil, promovendo o debate de temas socioeconômicos”, afirmou a instituição em nota.
De acordo com o STF, o ministro-presidente é o único que pode ter as passagens aéreas pagas com o orçamento da instituição. Porém, a Corte não informa se os demais gastos, como hospedagem e alimentação, são pagos com os recursos do Poder Judiciário.
Para André Boselli, coordenador do Programa de Ecossistemas de Informação da ONG Artigo-19, as informações sobre a participação de ministros em eventos “já deveriam ser públicas de partida”, em vez de terem de ser demandadas ao STF ou aos agentes privados que promoveram a participação dos magistrados.
“Independentemente de a viagem ser paga, o juiz vai estar discutindo, via de regra, com agentes privados que estão organizando o evento ou colocando dinheiro para que seja realizado. O problema é que nesses espaços algumas pessoas acabam tendo um canal de acesso privilegiado aos juízes, mesmo que a conversa seja republicana. A questão é que a gente não sabe exatamente o que está sendo conversado”, afirmou.
Para Boselli, “há um conflito de interesses aparente”. “A imagem que fica para quem está fora do Judiciário não é positiva e isso é ruim para o próprio Judiciário. Não se trata de fulanizar o caso. É o STF e o Judiciário que acabam tendo a imagem maculada por causa disso”, acrescentou.
Boselli avalia que o simples pagamento das despesas, como passagens e hospedagens, já é “problemático”, mesmo que não haja cachê, por causa da opacidade que permeia a realização desses eventos. “No nível da transparência, o que se espera é que todas essas informações sejam levadas ao público”, disse.
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As regras do CNJ proíbem aos magistrados “receber, a qualquer título ou pretexto, prêmios, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas”. O STF não disponibiliza informações sobre a participação dos ministros nos eventos, o que dificulta a checagem do processo de pagamento de despesas.
Maioria dos eventos com ministros do STF ocorre na Europa
Os organizadores de eventos e convescotes com ministros no exterior demonstram preferência por roteiros europeus. Os magistrados participaram de 14 atos na Europa, três deles na França, três na Alemanha, dois na Espanha, dois em Portugal, dois no Reino Unido e dois na Suíça. Houve ainda um no Canadá, um nos Emirados Árabes Unidos, um em Cabo Verde e um na Argentina.
Apesar de a Europa receber a maioria dos eventos frequentados pelos ministros do STF, os Estados Unidos ainda despontam como o País mais visitado pelos magistrados. Foram quatro viagens ao País entre janeiro e abril deste ano. Barroso participou de todas as viagens, seja como palestrante convidado ou em visita de cortesia representando a Presidência do STF. O ministro Luiz Fux foi a dois eventos nos EUA e o ministro André Mendonça, a um.
Nas idas de Barroso ao País, apenas um evento foi de caráter estritamente acadêmico. Em março, ele palestrou com Fux e Mendonça no Fórum EUA-Brasil de Chicago sobre Direito e Economia.
Nas demais ocasiões em que viajou para os EUA, Barroso participou da Brazil Conference em Harvard e no MIT, do Brazil Legal Symposium At Havard e deu palestra na Bolsa de Valores de Nova York. Apesar de dois dos eventos terem sido realizados na prestigiada Universidade de Harvard, eles contaram com vultosos patrocínios de grandes empresas e não se restringiram a debates jurídicos.
Em nota, a Brazil Conference disse que “não pagou nada a nenhum de seus convidados. E ninguém que vai ao evento recebe cachê”. A instituição disse ter convidado Barroso porque ele esteve em todas as edições anteriores do evento e pelo fato de ele ser o atual presidente do STF. O Brazil Legal Symposium At Havard não se manifestou.
Seja pelas missões institucionais ou pelos convites que recebe, o presidente do STF é o recordista em viagens ao exterior. Barroso palestrou em 16 dos 22 eventos com a presença de ministros fora do País. Dentre esses, sete foram organizados ou patrocinados por entidades privadas.
O cargo de presidente confere tratamento diferenciado a Barroso. Diferentemente dos demais ministros, o presidente do STF participa de visitas institucionais, como as realizadas no Fórum Econômico de Davos e na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) em Dubai.
Dentre os onze ministros da Corte, apenas os recém-chegados Cristiano Zanin e Flávio Dino não viajaram para participar de discussões jurídicas e seminários de interesse nacional fora do País. Dino tomou posse em fevereiro deste ano e Zanin em agosto do ano passado.
Porém, em junho do ano passado, quando ainda era ministro da Justiça do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dino participou do 11º Fórum Jurídico de Lisboa organizado pelo decano do STF, Gilmar Mendes. Zanin foi um dos convidados da edição, mas não viajou a Portugal para participar do painel.
O Fórum, apelidado por atores do mundo jurídico de “Gilmarpalooza”, em alusão ao festival de música Lollapalooza, se tornou nos últimos anos um dos principais eventos internacionais frequentados pelos representantes do Poder Judiciário brasileiro.
O encontro desloca anualmente dezenas de magistrados, parlamentares, ministros de Estado e empresários para discutir os rumos do Brasil na capital portuguesa. A interface brasileira do Fórum é organizada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do qual Gilmar é sócio, e pela Fundação Getulio Vargas (FGV), que responde a 18 ações no STF. Instituições de ensino portuguesas também participam da organização da conferência.
Na edição de 2023, três ministros do STF participaram dos três dias de palestras em Lisboa. Estiveram presentes Gilmar, Barroso, Mendonça e Dino, que ainda não havia vestido a toga de magistrado, mas já era cotado como favorito ao cargo. A edição deste ano está prevista para ocorrer entre os dias 26 e 28 de junho, mas ainda não divulgou a lista dos palestrantes.
Leia a nota do STF na íntegra
Ministros do Supremo conversam com advogados, com indígenas, com empresários rurais, com estudantes, com sindicatos, com confederações patronais, entre muitos outros segmentos da sociedade. E muitos participam de eventos organizados por entidades representativas desses setores, inclusive por órgãos de imprensa. Naturalmente, os organizadores dos eventos pagam as despesas. Quando um ministro aceita o convite para falar em um evento – e a maioria dos ministros também tem uma intensa atividade acadêmica -, ele compartilha conhecimento com o público do evento. Por isso, a questão não está posta da maneira correta, não se pode considerar a participação do ministro no evento como um favor feito a ele pelo organizador. Por essa razão, não há conflito de interesses.
Deu no Estadão