Desde o último final de semana, os brasileiros estão assistindo com assombro a um embate improvável: o do bilionário sul-africano Elon Musk, conhecido por ser dono das empresas X (antigo Twitter), SpaceX e Tesla, contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A briga começou após o jornalista americano Michael Shellenberger divulgar, em parceria com os jornalistas brasileiros Eli Vieira e David Agápe, os Twitter Files, documentos que mostram como tribunais superiores e autoridades brasileiras agiram para promover a censura, abusos, intimidações e ilegalidades contra usuários da plataforma – comentei o assunto no último programa Fora dos Autos aqui na Gazeta), apontando 4 abusos judiciais revelados pelos arquivos.
Diante do escândalo, Musk passou a criticar duramente o ministro Alexandre de Moraes por suas decisões que determinaram a censura, e chegou até mesmo a chamá-lo de “ditador”. Afirmou ainda que o X levantaria todas as restrições de conteúdo ainda existentes sobre perfis que foram bloqueados ou excluídos da plataforma. Segundo a imprensa, o bilionário ainda não cumpriu a promessa de reativar esses perfis ou os conteúdos supostamente criminosos que Moraes teria mandado remover. Assim, até o momento, há apenas uma ameaça de descumprimento das decisões judiciais.
Mesmo assim, a ameaça já foi suficiente para que o ministro reagisse, proferindo uma decisão de 7 páginas contra Musk. A decisão revela pelo menos 6 ilegalidades – praticadas não por Musk, mas pelo próprio ministro.
A primeira ilegalidade da decisão de Moraes é a violação do princípio da inércia, segundo o qual o Poder Judiciário não deve agir de ofício, mas apenas após a provocação das partes. O artigo 3º-A do Código de Processo Penal proibiu expressamente a iniciativa do juiz na fase de investigação. Nesse caso, Moraes afrontou a lei: decidiu de ofício, mandou instaurar inquérito e determinou medidas por conta própria, sem que a Polícia Federal (PF) ou a Procuradoria-Geral da República (PGR) tenham apresentado os pedidos. Assim agindo, Moraes viola também a legalidade estrita, que é o princípio de que os agentes públicos só podem agir dentro do que diz a lei.
A segunda ilegalidade da decisão é uma velha conhecida: Musk não tem foro privilegiado perante o Supremo e, portanto, a corte e Moraes não têm competência para investigá-lo, processá-lo ou julgá-lo. Essa ilegalidade já se tornou um padrão na teia de abusos cometidos pelo ministro Alexandre de Moraes, já que em praticamente todos os inquéritos conduzidos pelo ministro não há informações públicas de uma pessoa sequer que tenha foro privilegiado, o que está inclusive motivando o Supremo a rever seu entendimento sobre o foro para que possa prender Bolsonaro sem constrangimentos, como já expliquei aqui.
A terceira ilegalidade é parecida, mas diferente: ainda que o Supremo fosse competente para o caso, isto é, ainda que houvesse investigado com foro privilegiado, uma eventual nova investigação pelo crime de desobediência de Musk deveria ser distribuída livremente entre os membros do tribunal, por sorteio. Atuei em centenas de investigações por desobediência a ordens judiciais e elas não eram distribuídas por “conexão”, mas sim para um novo juiz, em geral dos Juizados Especiais, já que a pena do crime é baixa e não enseja normalmente uma acusação ou condenação, mas sim transação penal – que é uma espécie de acordo em que o investigado se compromete, por exemplo, a prestar serviços à sociedade ou doar cestas básicas.
A quarta ilegalidade decorre do fato de que Musk é um cidadão estrangeiro que fez suas postagens fora do Brasil em inglês, não havendo demonstração concreta de como ele estaria submetido à jurisdição brasileira, muito menos do STF. No caso de ofensas pessoais, o Superior Tribunal de Justiça entende que o crime acontece no tempo e local em que a pessoa insere a ofensa na rede social – ou seja, neste caso, no exterior. Para que a lei brasileira incida sobre um fato ocorrido no exterior devem estar presentes condições especificas descritas no Código Penal (artigo 7º) que não se verificam nesse caso.
As duas últimas ilegalidades são as mais graves.
Quinta ilegalidade: não há indícios reais da prática de crimes, como expliquei em detalhes aqui. Em apertado resumo: não ha crime de desobediência porque o ministro impôs multa, o que impede a configuração do crime segundo os tribunais; não ha crime de incitação porque o empresário não fez qualquer estímulo verbal à prática de crimes contra o STF ou quem quer que seja; além disso, eventual participação dos responsáveis pela plataforma em crimes de usuários só restaria configurada após o descumprimento pela rede social de uma ordem circunstanciada para retirada de posts específicos do ar, contida em uma decisão judicial que atenda os requisitos do Marco Civil da Internet.
Por fim, a vinculação de Musk a organizações criminosas ou a uma obstrução da investigação é absolutamente forçada, não somente porque não há qualquer indício de vinculação de Musk a tais organizações mas também porque o bilionário não se recusou a prestar informações para fins de investigação. O que ele fez foi recusar-se a tirar perfis e posts do ar enquanto não forem alvo de decisões que atendam os requisitos constitucionais e legais – lembrando que o Marco Civil estabelece como nulas as decisões que não atendam aos requisitos da lei.
A sexta ilegalidade, além de grave, chega a ser cômica: o ministro Alexandre de Moraes, em sua ânsia de incluir até mesmo um dos homens mais ricos e poderosos do mundo no balaio das suas investigações no Supremo, cometeu um erro primário e disse haver “fortes indícios de dolo do CEO da rede social ‘X’, Elon Musk”, na “instrumentalização criminosa” da plataforma. O problema é que a CEO do X é Linda Yaccarino, não Elon Musk, o que soterra de maneira absoluta o argumento que o ministro Alexandre de Moraes tentou construir e mostra a fragilidade da decisão.
Deltan Dallagnol foi procurador da Lava Jato e Deputado Federal cassado pelo TSE