O uso indiscriminado do espaço virtual, o acesso prematuro às plataformas digitais e o amadurecimento de estratégias por abusadores integram uma cadeia que ameaça a vida de crianças e adolescentes: a exploração sexual na internet. Em quatro anos, segundo o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, o número de violações sexuais contra esse público na internet cresceu 24% no Rio Grande do Norte. Em 2020, foram 25 casos notificados pelo levantamento. Já em 2023, o número passou para 31. As denúncias, por sua vez, não apresentaram crescimento expressivo, saindo de 19 para 20. O crime, conforme apontam fontes ouvidas pela reportagem, também é perpassado pela subnotificação.
A nível nacional, por sua vez, as queixas de imagens de abuso e exploração sexual infantil na internet bateram recorde em 2023. Ao todo, como mostra um levantamento da Safernet, organização que atua no recebimento de denúncias anônimas contra os direitos humanos e encaminha as ocorrências às autoridades, foram 71.867 notificações em todo o Brasil. O número é o maior desde o início da série histórica iniciada em 2006.
O professor Anderson Lanzillo, do Departamento de Direito Privado da UFRN, esclarece que a exploração sexual contra crianças e adolescentes na internet acompanha as complexidades que marcam a evolução das transformações digitais. Isso significa que, se antes os conteúdos circulavam em sua forma física, hoje eles estão disseminados em páginas na internet e nas redes sociais. Em muitos casos, as violações também acontecem a partir de transmissões em tempo real a partir de lives.
O docente avalia que essas possibilidades, dada sua capacidade de expansão, resultam em um perigo maior de exposição às vítimas. Isso porque tratam-se de espaços utilizados na comunicação cotidiana da sociedade, como é o caso do Instagram e Facebook, onde a presença de crianças e adolescentes é uma realidade. “Dentro dessa lógica, a exploração sexual não apenas com a exposição de material pornográfico, mas como prática que define as formas de exploração, também acompanhou isso”, complementa.
O procurador de Justiça, Manoel Onofre Neto, tem uma perspectiva semelhante e chama atenção para outro detalhe: o modus operandi dos abusadores. Longe de ser um processo instantâneo, ele esclarece que os criminosos tendem a criar conexões com familiares da vítima e estabelecer contatos gradualmente até obter a confiança da criança/adolescente para que envie fotos íntimas. A partir disso, se tem início as tentativas de encontros presenciais e as ameaças em casos de negativas. Tudo isso, favorecido por um perfil falso, no qual os violadores se escondem atrás de imagens de jovens com idades correspondentes ao das vítimas.
O contexto é apenas um dos vários desafios gerados pelo ‘submundo da internet’, apontado pela professora Ana Paula Felizardo, docente de Direito na UFRN. Para ela, os crimes contra grupos vulneráveis estão sendo intensificados. “Muitas vezes, os servidores onde as fotos de uma pronografia foram depositadas são de outros países. Então, o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes vai acompanhar as mudanças e práticas sociais”, afirma. Nas palavras dela, a exploração é como um ‘caminhão descontrolado’ que exige a criação de contenção para proteger a infância e adolescência da população.
Regulamentação
Face ao panorama de crescimento das violações virtuais, a legislação e as decisões jurídicas estão em evolução. Embora o Marco Civil da internet, instituído pela Lei 12.965/2014, estabeleça parâmetros para regular a grande rede, a regulação ainda carrega uma lógica que olha para o ambiente virtual com foco na conexão entre pessoas. É o que avalia Anderson Lanzillo, chamando atenção para uma problemática: o dispositivo para remoção de conteúdo.
O motivo é o fato do texto atribuir aos produtores de conteúdo a remoção de materiais da internet apenas sob ordem judicial. Por conta disso, uma das principais discussões está em promover uma responsabilização direta às plataformas digitais, o que teve maior repercussão no país a partir do “PL das Fake News”. Nos tribunais judiciais, por outro lado, entendimentos da jurisprudência avançam para interromper a veiculação de materiais de exploração sexual contra menores.
“Diante desse cenário, o que a nossa jurisprudência evoluiu – houve decisão recente em 2023 – é de fazer uma exceção quando envolve crianças e adolescentes. [O objetivo] é obrigar a remoção mesmo sem ordem judicial porque se trata de direitos indisponíveis, de um público que tem um tratamento especial. Então, há hoje um avanço no entendimento dos nossos tribunais”, explica Anderson Lanzillo.
Uma outra interpretação importante se refere a abuso sexual contra vulneráveis. Manoel Onofre Neto esclarece que os tribunais já entendem que pode ocorrer estupro na modalidade virtual. “Se antigamente o estupro era compreendido como algo físico, como a penetração ou ato lascivo como apalpar os seios, hoje é pacífico na jurisprudência de que pode ocorrer estupro virtual e já houve condenações aqui no Rio Grande do Norte”, complementa. Um exemplo desses crimes são simulações de atos sexuais a partir de video-chamadas.
Aritculações do MPRN e políticas públicas
O procurador Manoel Onofre Neto avalia que a prevenção é a principal medida que deve ser trabalhada no combate à exploração sexual contra crianças e adolescentes na internet. Nesse processo, o MPRN vem desenvolvendo um trabalho de articulação em rede, ao lado da Prefeitura de Natal , Cedeca Casa Renascer e UFRN para implementar a Lei 637/22 que prevê a instituição do programa “Escola que Cuida” nas escolas da capital potiguar.
A iniciativa foi inspirada no trabalho desenvolvido pelo Cedeca Casa Renascer, voltado ao enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescente no Rio Grande do Norte, e já alcançou 30 escolas desde 2005. Gilliard Laurentino, psicólogo na Organização, esclarece que o trabalho funciona por meio da capacitação de pelo menos quatro professores de cada escola que, posteriormente, ficam responsáveis por turmas de alunos para orientar sobre a autoproteção. Em 2023, um grupo de trabalho foi criado para promover o avanço do projeto como política pública a partir da Lei 633/22, mas a iniciativa ainda aguarda previsão orçamentária pela Prefeitura.
Na esfera estadual, por outro lado, um projeto de lei que cria a semana da educação tecnológica e digital foi aprovado pelo Governo do RN. Juliana Silva, coordenadora da Coordenadoria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (CPDH) do Estado, esclarece que a finalidade é não apenas instruir as crianças e adolescentes sobre as modalidades de violação, mas também ensinar os mecanismos de denúncias e formas de se resguardar. “Dentro do ambiente virtual, nós temos uma dificuldade ainda maior de [conscientizar] porque é necessário uma ação de educação sobre a tecnologia”, argumenta.
Se, por um lado, a necessidade de prevenção é evidente, por outro, os processos de investigação também exigem maior enfoque. Por conta disso, a Procuradoria de Justiça do Ministério do Estado criou a Coordenação de Investigações Especiais (Ciesp), inserido no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) do Órgão, em 2017. O objetivo é investigar e combater crimes de exploração sexual infantil no ciberespaço. Ao todo, desde sua criação até 2023, o Ciesp realizou 24 operações.
Informações da Tribuna do Norte