Como a minirreforma eleitoral pode prejudicar a representação feminina na política? Cientista política explica

 

Dia Internacional da Mulher - Abertura da campanha Março Mulher. Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, com a bancada Feminina da 57ª Legislatura.
Foto: Marina Ramos

 

A Câmara dos Deputados concluiu nesta quinta-feira, 14, a votação do Projeto de Lei da minirreforma eleitoral (PL 4438/23), que agora segue para o Senado Federal. O Congresso tem acelerado a tramitação das novas regras neste mês, já que as mudanças dependem da sanção presidencial até o dia 6 de outubro para terem validade nas eleições municipais de 2024. De acordo com o texto, o PL faz “pequenos ajustes em questões pontuais”, mas, no que diz respeito ao financiamento e às cotas para candidaturas femininas, a doutora em ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP, Beatriz Rodrigues Sanchez, a reforma não é nada pontual. A especialista aponta que as mudanças aprovadas pela Câmara podem atacar a representatividade feminina na política: “O pessoal está falando de minirreforma, né? Mas, na verdade, não é muito ‘mini’ porque ela mexe em muitas coisas que são bastante prejudiciais para a representação política das mulheres e de pessoas negras. Acho que, ao chamar de minirreforma, a gente acaba ocultando o fato de que ela pode mexer bastante no sentido de piorar a representação feminina”.

No tópico das candidaturas femininas, a minirreforma elenca as condutas que podem ser caracterizadas como fraude à reserva de recursos e campanha para mulheres. Segundo o texto, são consideradas abuso de poder político a não realização de atos de campanha e número total de votos que revele “não ter havido esforço de campanha, com resultado insignificante”. A lista das condutas, no entanto, é menor em relação à divulgada inicialmente na primeira versão do PL. O texto original previa que, além das duas situações, também seriam consideradas fraude à cota de gênero a falta de repasses financeiros às campanhas e a ausência de gastos nas candidaturas. Para Sanchez, tal determinação foi usada para afrouxar a regra e assim facilitar a aprovação da reforma: “Retirar essas determinantes para verificar se houve fraude ou não, na verdade, é uma estratégia que está sendo adotada para acelerar o processo de aprovação da minirreforma. Porque o objetivo é que ela seja aprovada a tempo de valer para as eleições do ano que vem. Então, tudo que eles puderem fazer para acelerar esse processo de implementação, eles vão tentar fazer. Mas acaba sendo super prejudicial do ponto de vista da representação das mulheres”.

“A falta de repasses também é uma fraude à lei (…) Isso não sendo mais considerado uma fraude seria um problema, já que a gente sabe que as candidaturas femininas continuam sendo subfinanciadas em comparação às candidaturas masculinas. E uma outra questão desse ponto é que as determinantes que ficaram para considerar como fraudes são coisas que, na verdade, culpabilizam a candidata. É sempre do ponto de vista individual da candidata que não cumpriu aquela regra. Então, você tem uma culpabilização das candidatas e não do partido por não ter cumprido”, analisa. A especialista alerta que não punir a falta de repasses de verbas abre brecha para que apenas uma candidata, ou um núcleo pequeno de candidatas, receba os 30% destinados a todas as candidaturas femininas: “Em vez de você distribuir o recurso para candidaturas femininas por várias candidatas, abre essa brecha para que só uma possa receber. Isso também seria bastante prejudicial do ponto de vista da representação”.

Atualmente, os partidos deverão destinar, no mínimo, 30% de recursos dos fundos eleitoral e partidário a essas candidaturas. A regra também estabelece que os repasses deverão ser proporcionais ao número de candidaturas negras e femininas registradas. Ou seja, caso existam 50% de candidaturas que se enquadrem nesta cota, 50% dos recursos devem ser destinados. No entanto, a minirreforma permite que o dinheiro seja destinado a despesas comuns entre mulheres e candidatos do sexo masculino, “desde que haja benefício para campanhas femininas e de pessoas negras”. O texto, contudo, não define quais seriam esses benefícios. A cientista política destaca que a mudança pode permitir o desvio indevido de recursos: “Ao não definir exatamente quais seriam esses benefícios para candidaturas femininas, abre uma brecha para que esses recursos possam ser utilizados para candidaturas masculinas (…) Você coloca no panfleto um candidato grande de um lado e uma mulher pequena no verso, por exemplo, e isso pode ser considerado como um incentivo ou investimento em candidatura feminina. Você tem uma candidatura, por exemplo, para prefeito e coloca um homem como prefeito e a mulher como vice. Aí repassa investimento nessa candidatura, só que você está investindo numa candidatura de um homem na cabeça de chapa”.

Outra determinação do PL diz respeito à cota mínima de 30% de candidatas mulheres ser preenchida por uma federação, e não por cada partido individualmente. No caso, se duas siglas estiverem federadas, uma delas não precisa ter 30% de candidatas, desde que outra legenda compense este percentual. Sanchez aponta que a mudança enfraquece a legislação anterior, que obrigava todos os partidos a cumprirem a cota. “É uma forma de enfraquecer a representação política das mulheres. Essa ideia de que a federação deve cumprir os 30% parte muito de uma perspectiva da cota para candidaturas femininas como um teto, e não como um patamar mínimo. Todo o objetivo da lei de cotas sempre foi pensar a representação feminina, os 30%, como um mínimo, um patamar mínimo para a representação”, explica. “Quando você fala que a federação tem que cumprir, e aí cada partido compensa os 30%, a ideia é de que os partidos, depois de cumprirem os 30%, não precisam fazer mais nada. Vai muito contra a perspectiva de aumentar a representação política das mulheres e torná-la de forma mais igualitária. Outro problema é que você desobriga os partidos individualmente a cumprirem a cota (…) Isso abre uma brecha muito grande para que partidos que não querem cumprir a cota possam não cumprir e mesmo assim a federação cumpre.”

Projeto enfraquece melhorias já feitas

Desde 1997, quando foi aprovada pela primeira vez, a nível nacional, a cota de 30% de candidaturas para as mulheres, a questão da representação feminina perpassa a maioria das propostas de reforma eleitoral no Congresso Nacional. No entanto, pouco tem mudado na proporção de mulheres que ocupam cargos eletivos, como destaca a pesquisadora da USP: “As mulheres representam metade da população brasileira, metade do eleitorado, seria de se esperar que elas também ocupassem a mesma porcentagem de cadeiras dentro do parlamento, que não é o que acontece. Mas as reformas que foram feitas desde então foram nesse sentido”. A especialista destaca como avanços claros o mínimo de destinação de 30% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para as candidaturas de mulheres, em 2009, e posteriormente a destinação do financiamento para estas candidatas de acordo com a porcentagem de candidaturas, estabelecido em 2018. Porém, ela lamenta que a minirreforma esteja minando estas melhorias no ambiente político para as mulheres: “Nessa minirreforma, a gente está indo no sentido contrário, de flexibilizar regras que tinham sido feitas para pensar o aumento, o reforço da representação política feminina, no sentido de enfraquecer a lei que já foi aprovada”. Sanchez também sugere que o Brasil siga exemplos de países que conseguiram de fato aumentar a representação feminina na política.

“A gente poderia pensar, por exemplo, no aumento da porcentagem de reserva de candidaturas, então, hoje a gente tem 30%, poderia pensar em aumentar essa porcentagem de reserva de candidaturas (…) Em alguns países, você reserva cadeiras dentro do parlamento e não candidaturas, mas só falando de candidaturas, a gente poderia pensar em uma porcentagem de 50% de reserva de candidaturas em direção à paridade de gênero, como outros países têm adotado. Ou pensar também em aumentar a reserva de financiamento para as mulheres. Hoje, a gente tem uma determinação de 30%. Por que não pensar em aumentar essa porcentagem, que também é algo que foi feito em outros países se a gente vê, por exemplo, o caso da Argentina, do México e da Bolívia? Isso para citar alguns países latino-americanos, todos foram no sentido de aumentar a fiscalização e não flexibilizar a fiscalização (…) Infelizmente essa minirreforma, da forma como ela está sendo proposta agora, vai no sentido contrário de tudo isso ao flexibilizar e não endurecer e aumentar a fiscalização dos partidos que não cumprirem a cota”, destaca a pesquisadora.

 

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