A Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), órgão da Advocacia-Geral da União (AGU) que vem sendo chamado de “Ministério da Verdade”, terá sua primeira reunião nesta terça-feira (28). Criado pelo governo Lula com o objetivo alegado de atuar “para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”, o novo órgão desperta o temor de prática de censura contra opositores.
O grupo de trabalho convocado pelo governo, formado por integrantes da sociedade civil e do poder público, deve usar a reunião desta terça para elaborar um calendário de trabalho e estabelecer as atribuições de cada integrante. A equipe é constituída por 11 acadêmicos cujo vínculo com a esquerda é evidente na maioria dos casos, além de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e de entidades que representam os meios de comunicação.
Nas últimas semanas, parlamentares de oposição se dividem no tipo de atitude em relação ao novo órgão. Há unanimidade na preocupação com a ameaça à liberdade de expressão, mas alguns mantêm a esperança de diálogo com o governo ou de barrar a procuradoria pela via legislativa, enquanto outros demonstram ceticismo com ambas as alternativas.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) diz que considera a criação da PNDD “uma forma de tentar intimidar e monitorar a opinião no Brasil”. No entanto, ele acredita que houve um recuo do governo nas últimas semanas, e está menos pessimista depois que a AGU entrou em contato com ele e outros parlamentares, como a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), com o interesse de ouvi-los.
Segundo o senador, a pressão da sociedade e do Congresso fez com que o governo recuasse em relação ao teor da proposta feita em janeiro. “Eles confirmaram que estavam reavaliando, que queriam montar um grupo de trabalho e queriam nos ouvir. Achei bacana isso. Espero que seja efetivo, porque o diálogo é o caminho”, observa.
Bia confirma que também foi procurada por um assessor parlamentar da AGU e aprova a atitude do órgão, mas mantém as críticas. “Isso não muda o fato de que essa procuradoria é uma coisa absurdamente ilegal, não está prevista na lei. A gente entende que todos os movimentos que têm sido feitos hoje para querer caracterizar a defesa da democracia, na verdade, têm se oposto ao sentido da verdadeira democracia. O que eles querem é censurar, coibir vozes dissonantes, então já está claro o propósito da criação desta procuradoria. Nós somos contrários, mas estamos sempre abertos ao bom relacionamento institucional”, diz a deputada.
Além de Girão, vários parlamentares protocolaram projetos de decreto legislativo (PDLs) contra a criação da PNDD. O senador Sergio Moro (União-PR) e os deputados Mendonça Filho (União-PE), Caroline de Toni (PL-SC), Chris Tonietto (PL-RJ), Kim Kataguiri (União-SP) e Adriana Ventura (Novo-SP) estão nessa lista.
Mendonça Filho também foi contatado pela AGU, mas avalia essa aproximação com pouco otimismo. Ele diz que se dispõe a conversar, mas não aceita fazer concessões. O deputado coloca suas fichas na via legislativa e quer barrar a nova procuradoria.
“Tenho sentido a manifestação de vozes importantes [no Congresso] preocupadas com esse avanço em cima das nossas liberdades”, afirma. “Creio sinceramente que haverá uma amplitude de personagens políticos relevantes dentro do parlamento pressionando as lideranças, para que a gente possa, primeiro, coletar as assinaturas necessárias para um requerimento de urgência, que é o próximo passo, e pautar a aprovação do requerimento, para que o projeto possa ir direto para a pauta da Câmara Federal e, assim, o presidente Arthur Lira possa pautar esta matéria”.
Para isso, no entanto, o deputado vê como fundamental a pressão exercida pela sociedade civil, pela mídia e também pelo meio acadêmico, especialmente do campo jurídico. “Como tudo o que ocorre dentro do parlamento, isso dependerá das repercussões e das reverberações no ambiente extracongresso”, diz.
Para a deputada Adriana Ventura, a mobilização dos congressistas de oposição precisa ser maior. “Alguns parlamentares têm se mobilizado, e há certa união. Mas, na minha visão, ela ainda é pequena perto do que está acontecendo. E a gente também precisa pensar em causar impacto fora do Congresso. Afinal de contas, independentemente de ideologia política, esse tipo de retrocesso não pode acontecer nunca, nunca”, enfatiza.
Uma dificuldade para a aprovação da pauta, na visão dela, é a tendência do governo Lula de “manejo malicioso da democracia”. “Vamos lembrar que a história de Lula como presidente foi marcada pelo mensalão, por compra de parlamentares, e a gente viu que neste começo já houve vários escândalos”, diz, em referência às novas investidas do PT para comprar votos no parlamento.
O deputado Kim Kataguiri (União-SP) é ainda mais cético em relação à disposição do Congresso de discutir o assunto. Para ele, “não há chance de aprovação”, já que o governo tem um “poder de cooptação muito forte”. Ele também acusa os apoiadores de Bolsonaro no Congresso de serem “uma força divisiva” que representará uma barreira para a união de forças contra o “Ministério da Verdade”.
“Ministério da Verdade” faz o oposto do que alega fazer, dizem parlamentares
O grupo de trabalho que inicia as atividades da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia nesta terça terá como objetivo elaborar uma minuta de regulamentação a ser disponibilizada no portal da AGU para consulta pública. Posteriormente, o documento segue para avaliação do advogado-geral da União, Jorge Messias.
Em janeiro, a AGU afirmou que “sob nenhuma hipótese” usará a procuradoria para cercear opiniões e críticas ou atuar “contrariamente às liberdades públicas consagradas na Constituição”. Parlamentares de oposição, no entanto, consideram inconstitucional e antidemocrática a própria criação do órgão.
“Esse órgão com esse nome bonito vai fazer o inverso do que propõe. Ele não vai defender democracia. Para defender a democracia, a gente já tem a Constituição, que, aliás, não está sendo cumprida”, comenta Adriana Ventura.
Mendonça Filho ressalta que alguns conceitos que embasam a fundação do órgão, como o de “desinformação”, não têm uma definição no sistema político e jurídico brasileiro, o que abre espaço a iniciativas autoritárias.
“É uma disfunção institucional, uma contrariedade ao marco institucional brasileiro. Não cabe ao Poder Executivo, por meio de um braço que defende a União judicialmente, como é a Advocacia-Geral da União, julgar ou determinar o que é ato democrático ou antidemocrático. Cabe a quem se sentir ofendido processar quem esteja ultrapassando os limites da legalidade, ou ao Ministério Público, que, eventualmente, como fiscal da lei, pode imputar a alguém a prática de um crime”, comenta.
Para Kataguiri, a criação do “Ministério da Verdade” é um atentado à democracia. “Na medida em que se dá tal poder ao governo, ele fica responsável por definir o que é verdade e o que é mentira. Essa competência é típica de regimes autoritários. A sociedade civil vai sendo sufocada pelo governo, e as pessoas passam a ter medo de expressar críticas”, observa.
O deputado também critica a omissão de parte da imprensa em relação à ofensiva de Lula contra a liberdade de expressão. “Sejamos francos: setores da grande imprensa apoiaram a eleição de Lula. Em parte isso se deu por causa do horror bolsonarista, mas em parte é afinidade ideológica mesmo. Há, em setores da grande imprensa, uma presunção de que tudo o que vem do governo Lula é bom, e tudo o que vem da direita é mau. É claro que se o governo apertar a censura, a imprensa poderá mudar”, afirma.
Adriana Ventura também considera que “a imprensa está muito em silêncio”. “Não estão entendendo a gravidade. Este ‘Ministério da Verdade’ que estão querendo constituir pode calar de vez a imprensa”, avalia a deputada, que teme o uso do órgão para o controle dos meios de comunicação, a desmobilização popular e a censura prévia.
Com informações da Gazeta do Povo