O cemitério Hollywood Forever é um ponto turístico de Los Angeles. Em seus jazigos descansam ícones do cinema e da música como Judy Garland, Cecil B. DeMille, Chris Cornell e os Ramones Johnny e Dee Dee. Mas, no dia 23 de julho de 2003, o local recebeu um velório
inusitado. O morto era um carro: o EV1, fabricado pela General Motors entre 1996 e 1999. Ele não foi o pioneiro dos carros elétricos (esse tipo de veículo surgiu em 1881, com um protótipo criado pelo inventor parisiense Gustave Trouvé), mas foi o primeiro fabricado por uma grande
montadora.
O EV1 usava baterias de chumbo, pesadas e fracas, e por isso não era nenhuma maravilha – podia rodar no máximo 89 km antes de voltar para a tomada.
Mas essa autonomia já era suficiente para uso urbano leve (ir e voltar do trabalho, fazer compras, levar os filhos na escola etc.), e por isso o EV1 conquistou uma pequena legião de fãs: 1.117 unidades foram produzidas pela GM, que as alugava (não vendia) por US$ 300 mensais.
Até que, um belo dia, a empresa resolveu acabar com tudo. Houve gente implorando para manter o aluguel ou comprar o carro, mas a GM não quis nem saber.
Alegando que o EV1 não dava retorno sobre o investimento, que havia sido de US$ 1 bilhão, ela recolheu todas as unidades do veículo – guardou algumas, mas a maioria acabou triturada no ferro-velho.
A história suscitou uma série de teorias da conspiração (o documentário americano Quem Matou o Carro Elétrico, de 2006, alega que a GM foi pressionada pela indústria do petróleo) e até hoje causa polêmica.
Anos depois de deixar o cargo de CEO da empresa, Rick Wagoner disse que acabar com o EV1 havia sido o maior erro de sua vida.
Como todo erro leva a um aprendizado, houve quem se inspirasse na morte do EV1. “Poucas pessoas sabem que começamos a Tesla quando a GM obrigou o recall de todos os carros elétricos dos clientes, em 2003, e depois os esmagou em um ferro-velho”, disse Elon Musk,
fundador da Tesla, hoje a principal fabricante de carros elétricos. Em 2020, as vendas de veículos em geral caíram 16% no mundo. Mas os elétricos fizeram o caminho oposto, e cresceram 41%. Após desprezar o carro elétrico, agora as montadoras estão correndo atrás.
A Volvo anunciou que, a partir de 2030, deixará de vender carros a combustão. Ford e Mercedes prometeram o mesmo para o mercado europeu, enquanto a Volkswagen estipulou metas para que seus elétricos sejam 70% das vendas na Europa e 50% nos EUA e na China. Já a GM
definiu 2035 como fim da linha para seus carros e caminhões a gasolina e diesel. “O veículo elétrico está muito mais próximo do que se imagina, ele é um tema presente. Prova disso é a cotação das ações. Quem vale mais: a Tesla ou a Volkswagen, a Ford, a GM?”, diz o analista
Geovani Fagunde, da consultoria PwC. A Tesla tem valor de mercado de US$ 630 bilhões. Isso é o equivalente a Toyota, Volkswagen, Daimler (Mercedes), GM, Honda, Hyundai, FCA (Fiat Chrysler), Ford e Nissan – somadas.
Há quem diga que o valor de mercado da Tesla está inflado. Seria uma bolha financeira que não reflete a realidade da empresa. De fato: ela produz 500 mil carros por ano, bem pouco se comparada a Toyota (9,5 milhões), VW (9,3 milhões) ou GM (6,8 milhões). Mas o valor da Tesla
reflete o que os investidores acreditam que vai acontecer daqui para a frente – e há sinais fortíssimos de que o carro elétrico deve se tornar o novo padrão em um período relativamente curto.
No fim do ano passado, o Reino Unido anunciou que irá proibir a fabricação de carros e vans com motor a combustão a partir de 2030, e a União Europeia pretende fazer o mesmo a partir de 2035. Se você levar em conta a vida útil de um carro, 10 a 15 anos, perceberá o seguinte:
para os europeus que estão comprando um veículo a combustão agora, ele pode ser o último.
Nos Estados Unidos, terra das casas e dos carros gigantes (há 39 anos consecutivos, o veículo mais vendido no país é a picape Ford F-150, um elefante de 3.000 kg), ainda não há planos de banir os motores a combustão. Mas os carros elétricos também avançam rápido, por
outra via: o bolso. Um estudo feito pela empresa de pesquisas BloombergNEF (1), que obteve dados internos dos sete maiores fabricantes de baterias do mundo, prevê que em 2024 os carros elétricos irão se igualar, pela primeira vez na história, ao preço dos modelos a gasolina.
Isso se deve à evolução das baterias, que são a peça mais cara do carro elétrico – correspondem a até 40% do valor do veículo.
O preço delas está despencando (veja gráfico abaixo), por três razões: o aumento da produção, a pressão competitiva da Tesla (que produz as próprias baterias em sociedade com a Panasonic, e tem forçado os demais fabricantes a abaixar os preços) e a evolução tecnológica. As
baterias de lítio mais modernas armazenam até 800 watts/hora de eletricidade por quilo de bateria. É um ganho de 23% sobre os modelos tradicionais – e permite colocar 23% menos baterias nos carros, reduzindo seu preço sem comprometer a autonomia.
Imagem : Carlos Eduardo Hara / Bruno Garattoni / Superinteressante
Hoje os carros elétricos já têm alcance de sobra, com vários modelos superando 600 km, autonomia média dos veículos com motor a combustão. O desafio tecnológico já foi vencido, falta só a parte financeira. Quando os preços se igualarem, os veículos elétricos terão tudo para
conquistar os americanos – inclusive porque é muito mais barato “abastecê-los” (o custo por km rodado é 50% a 80% menor do que num carro a gasolina).
Enquanto isso não acontece, os EUA tentam acelerar o processo com subsídios. Este ano, a Casa Branca anunciou um plano para investir US$ 174 bilhões em veículos elétricos. Desse total, US$ 100 bilhões irão para incentivos aos consumidores. O restante, para projetos como
a instalação de 500 mil estações de recarga e financiamento a fabricantes de baterias. A intenção é depender menos de importações, já que todas as principais plantas ficam na Ásia (a exceção é a megafábrica Tesla/Panasonic, construída em Nevada).
Ao mesmo tempo em que estimulam o carro elétrico, EUA e Europa apertam o cerco à indústria do petróleo. Em maio, a Justiça da Holanda obrigou a multinacional Shell (cuja sede fica lá) a cortar em 45% suas emissões de CO2 até o ano de 2030.
A americana ExxonMobil sofreu um baque similar: o fundo de investimento Engine No. 1, que detém ações da empresa e quer que ela pare de vender combustíveis fósseis, conseguiu eleger três representantes para o conselho de administração. O fundo possui apenas 0,02% das
ações da ExxonMobil – mas terá25% dos votos nas decisões da petroleira. Isso aconteceu porque os maiores acionistas da Exxon concordam com a visão do fundo: de que o futuro não é do petróleo, é das baterias.Em suma, há vários fatores convergindo em favor do carro elétrico.
Mas e no Brasil? Aqui, como você deve imaginar, é diferente. A infraestrutura tem avançado, com a instalação de mais pontos de recarga rápida, e as vendas de carros elétricos bateram recorde nos primeiros meses deste ano. Mas ainda estamos bem atrás dos países ricos.
Isso tem várias explicações, a começar por uma meio inusitada: o peso das baterias.
Fonte : Superinteressante