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O conteúdo de relatórios de fiscalizações elaborados pelo Conselho Regional de Medicina do RN (Cremern) revela um quadro crítico nos principais hospitais da rede estadual de saúde, com falta de medicamentos e insumos básicos, suspensão de exames laboratoriais essenciais e riscos iminentes à segurança dos pacientes. As vistorias ocorreram no Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, em Natal, e no Hospital Regional Tarcísio Maia, em Mossoró, e levaram o conselho a ingressar com uma Reclamação Pré Processual na Justiça Federal pedindo que o Estado resolva a situação.
A ação foi protocolada no dia 03 de junho. De lá para cá, 10 dias depois, segundo o Cremern, não houve melhora. “O que motivou a ação judicial foi a constatação de um desabastecimento superior a 75% nos setores responsáveis pela distribuição de medicamentos e insumos nos hospitais. O objetivo é que o gestor responsável tome uma iniciativa concreta para reverter esse quadro”, explicou o presidente do Cremern, Marcos Antônio Tavares.
No dia 26 de maio passado, a equipe constatou o desabastecimento de itens fundamentais para o atendimento médico no Walfredo Gurgel. Em reunião com a direção da unidade, foram apontadas faltas de antibióticos de amplo espectro (como Meropenem e Polimixina), trombolíticos usados em casos de infarto (como Alteplase), anestésicos, analgésicos e anti-inflamatórios, além de materiais básicos como seringas, agulhas e álcool 70%. Segundo o Conselho, a situação permanece.
O relatório diz que a ausência desses insumos tem impacto direto no prolongamento de internações, no aumento de infecções hospitalares e na piora dos desfechos clínicos, alertando, ainda, para o risco de mortes evitáveis. “Não há como oferecer um atendimento de qualidade sem insumos. Não é má vontade nem oposição política: é uma constatação técnica de falhas graves na gestão,” afirmou Tavares.
No setor de oftalmologia, constatou-se a inexistência de colírios e pomadas anestésicas. Já na ala de queimados, foi confirmada a falta de lâminas específicas para o funcionamento do dermátomo elétrico, que é utilizado rotineiramente em cirurgias de pacientes graves. A escassez ameaça a continuidade de procedimentos cirúrgicos. “Estamos em junho, mês historicamente com aumento de casos de queimaduras graves. No setor de queimados do Walfredo, os médicos estão comprando material do próprio bolso para fazer curativos. Isso demonstra o colapso do sistema,” relatou o presidente do Cremern.
Na ocasião da vistoria, a gestão hospitalar informou que a maioria dos insumos em falta são financiados com recursos da Fonte 500 (do Estado), considerada instável, enquanto a Fonte 600 (federal) teria maior eficiência. Além disso, que havia um processo licitatório em andamento, mas sem previsão de conclusão.
A Secretaria de Saúde do Estado (Sesap/RN) foi procurada, mas não se manifestou sobre o assunto. No início do mês, quando o Cremern anunciou a ação, a pasta se manifestou em nota explicando que “as atuais dificuldades de abastecimento da rede decorrem da diminuição da alíquota do ICMS que, enquanto ficou vigente, retirou da saúde e do SUS R$ 132 milhões em 2024”. Além disso, disse que vem aplicando um “esforço permanente em busca da manutenção dos serviços, investindo amplamente nos estoques de insumos não só dos dois hospitais citados, mas de toda a rede estadual com 21 hospitais e dezenas de outras unidades de referência.”
Mossoró
Já em Mossoró, no Hospital Regional Tarcísio Maia, a vistoria realizada no dia 5 de fevereiro encontrou 29 leitos de UTI, com um bloqueado por falta de insumos. Apesar de terem passado meses desde a visita, o Cremern diz que a situação não mudou. A Central de Abastecimento da unidade também apresentava desabastecimento, com pedidos de reposição feitos à UNICAT em janeiro parcialmente atendidos. A direção informou aos fiscais que a reforma estrutural da unidade estava paralisada. Como resposta emergencial, foi autorizada compra com dispensa de licitação.
Marcos Tavares reforça que o problema não se restringe a duas unidades. “A situação não é exclusividade do Walfredo e do Tarcísio Maia. O Hospital Santa Catarina, por exemplo, está com a UTI em funcionamento extremamente precário, segundo relatos recentes de colegas médicos.”
Os dois hospitais citados no relatório atendem os casos mais críticos: vítimas de acidente de moto, de carro, tiro, facada, situações em que, se não houver atendimento imediato, o paciente morre, conforme alerta o Cremern. O conselho afirma que todas as vistorias são feitas com transparência e relatórios emitidos imediatamente ao final da visita e enviados também ao Conselho Federal de Medicina.
Dívida de R$ 4,1 milhões com fornecedores
No relatório do Cremern consta um memorando assinado pelo Chefe da Divisão da Farmácia do Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, Thiago Alessandro Bezerra de Sá, reconhecendo a situação crítica de desabastecimento da unidade hospitalar. Enviado à Secretaria de Saúde Pública do Estado (Sesap/RN) no dia 26 de maio de 2025, o documento apontou como principal causa a inadimplência acumulada com fornecedores estratégicos.
Além disso, classifica como grave o cenário enfrentado pela rede assistencial, com quebra na disponibilidade de itens médico-hospitalares essenciais, o que compromete diretamente a assistência à população e a segurança dos pacientes. O servidor afirma que o hospital vem enfrentando sérias dificuldades na gestão de estoque, já que diversos fornecedores suspenderam as entregas devido à ausência de pagamento, inclusive de dívidas acumuladas em exercícios anteriores.
Entre as empresas credoras, o memorando cita valores expressivos: UNI Hospitalar: R$ 1.329.595,10; Conquista Distribuidora: R$ 617.278,80; ROSS Medical: R$ 280.464,00, entre outras empresas somando mais de R$ 4,1 milhões em pendências financeiras. Ainda segundo o documento, mesmo com tentativas parciais de regularização por meio de empenhos lançados, os fornecedores têm exigido a quitação integral dos débitos antigos como condição para retomar o fornecimento.
A situação compromete a reposição de medicamentos e insumos considerados vitais, como antibióticos de amplo espectro (como Meropenem), trombolíticos (como Alteplase), anestésicos, analgésicos e anti-inflamatórios, além de materiais hospitalares básicos, como seringas, agulhas, ataduras de crepom e campos operatórios estéreis.
Thiago Bezerra alertou que esse quadro poderia levar à paralisação de setores hospitalares essenciais, impactando os atendimentos de urgência, emergência, cirurgias e demais procedimentos assistenciais. Ele reconheceu que a Sesap/RN autorizou alguns pagamentos fora da ordem cronológica, mas que essas medidas tinham sido insuficientes para evitar o bloqueio por parte dos fornecedores. Por fim, o chefe da Divisão da Farmácia solicitou análise e deliberação urgente de medidas extraordinárias para a regularização parcial ou total dos débitos mais sensíveis, sob pena de colapso na rede hospitalar.
O presidente do Cremern diz que a inadimplência com fornecedores leva ainda à suspensão de exames laboratoriais essenciais, como análises de bioquímica clínica, imunologia, sorologia e microbiologia – indispensáveis para diagnósticos e manejo de infecções. A falta desses exames compromete diretamente a conduta médica e a segurança dos pacientes internados. “Muitos fornecedores já não querem mais negociar, porque estão há meses sem receber. Chegou-se ao limite. E o resultado é esse: médicos tentando trabalhar sem estrutura”, diz Marcos Tavares.
Protesto
Junto a servidores do Hospital Walfredo Gurgel, familiares e acompanhantes de pacientes protestaram na manhã da sexta-feira (13) em frente à unidade contra a falta de insumos básicos, como lençóis, sabão, álcool e medicamentos.
A diretora do Sindicato dos Profissionais da Saúde do Estado (Sindsaude/RN) e servidora do Walfredo, Maria Lúcia da Silva, diz que a escassez aumenta o risco de infecções e de morte do paciente. “Se não tem esses itens, a infecção do paciente piora e aí também falta antibiótico para tratar essa infecção. Os gestores vão dizer que é mentira, mas nós que estamos na assistência sabemos e vemos que é isso que acontece”, denuncia.
Segundo a servidora, o cenário já dura cerca de quatro meses. “Está sendo preciso escolher, geralmente os mais graves, que vão ter banho, ter lençol. Quando vem a vistoria, eles abastecem rapidamente para disfarçar. Todo dia morre paciente no Walfredo e, se investigar, vai ver que é por causa das infecções provocadas por esse problema”, destaca.
Informações da Tribuna do Norte