Foto: STJ/Divulgação
A investigação da Polícia Federal sobre venda de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) identificou indícios da existência de vínculos de um dos empresários investigados, Haroldo Augusto Filho, com ao menos dois ministros do tribunal.
As informações foram obtidas na análise dos celulares e documentos apreendidos nas primeiras fases da Operação Sisamnes. No celular do empresário, foram encontrados diálogos com parentes de ministros e citações a essas autoridades, conforme informações obtidas com exclusividade pelo Estadão.
Uma das descobertas foi que o ministro João Otávio de Noronha, ex-presidente do tribunal, usou uma aeronave privada disponibilizada pelo empresário para viajar de Brasília a Cuiabá, em abril de 2024. A viagem foi para participar de um evento jurídico organizado pela seccional de Mato Grosso da Ordem dos Advogados do Brasil e patrocinado pela Fource, empresa de Haroldo Augusto.
A PF também identificou diálogos entre Haroldo e a advogada Catarina Buzzi, filha do ministro Marco Buzzi. O ministro ainda participou de eventos jurídicos em Cuiabá patrocinados pela Fource. No dia de um desses eventos, Haroldo conversou com um interlocutor sobre a organização de jantar para um ministro. Apesar de não citar o nome de Buzzi, o empresário afirmou na conversa ser amigo da filha desse ministro.
As informações tramitam sob relatoria do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin. Os ministros citados não são formalmente investigados. A PF ainda analisa se as citações aos ministros, em conjunto com outras provas colhidas, constituem indícios de irregularidades ou se tratavam apenas de tentativas do empresário para se aproximar das autoridades públicas. Eles negam ter proximidade com o empresário.
Haroldo Filho foi um dos alvos de busca e apreensão na primeira fase da Operação Sisamnes, deflagrada em novembro do ano passado com autorização do STF. Ele é um dos sócios da Fource, consultoria de Mato Grosso especializada em comprar empresas em situação de crise, como recuperação judicial ou enfrentando disputas de terras. Procurado pela reportagem, ele não se manifestou.
As informações levantadas pela Polícia Federal até agora indicam que a Fource não aparece diretamente nos processos judiciais de seu interesse. A investigação aponta que a empresa compra o que está sob litígio e atua nos bastidores desses processos.
No STJ, uma das suspeitas é que a Fource tem atuado em um processo que tramita na relatoria do ministro Marco Buzzi e envolve uma disputa fundiária em Mato Grosso. A Fource não consta como parte, mas um dos advogados que trabalha para a empresa ingressou formalmente nos autos.
A parte representada nos bastidores pela Fource apresentou uma ação judicial na primeira instância alegando ser dona de um terreno cujo antigo proprietário havia morrido. A Justiça de Mato Grosso entendeu que a prova dessa propriedade se baseava em um contrato falsificado após a morte dele. Em setembro de 2022, o ministro Marco Buzzi proferiu uma liminar favorável, mandando anular todas as decisões das instâncias inferiores. O processo ainda vai ser julgado na Quarta Turma, presidida por Noronha. São justamente os dois ministros com os quais o empresário Haroldo buscou aproximação.
A PF já concluiu um dos inquéritos envolvendo Haroldo e apontou que ele comprou decisões judiciais de dois desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso envolvendo litígios sobre a posse de terras. Agora, a PF investiga se Haroldo também tentou comprar decisões no STJ.
Como funcionava o esquema
A suspeita inicial detectada pela investigação foi que, para executar esses atos de corrupção, ele usou os serviços do advogado Roberto Zampieri e do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves.
Assassinado em dezembro de 2023 em Cuiabá, Zampieri se tornou o pivô dessa investigação sobre venda de decisões judiciais. O seu celular foi apreendido para a investigação sobre os motivos do crime, mas os diálogos encontrados no aparelho indicaram também diversas suspeitas de corrupção de magistrados. Por isso, o material foi enviado para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e usado para abertura de investigação da Polícia Federal no ano passado.
Andreson atuava como lobista junto aos gabinetes de ministros do STJ. Nos diálogos, ele compartilha minutas antecipadas de decisões de ministros e diz ter influência no tribunal. As conversas entre os dois citam interesse de Zampieri em processos que passaram pelos gabinetes de Buzzi e Noronha. Em um dos casos, por exemplo, Andreson enviou a Zampieri uma minuta de decisão que seria proferida por Noronha durante seu período na presidência do STJ, mas essa decisão nunca chegou a ser efetivada. A defesa do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves foi procurada, mas não se manifestou.
Com base nessas provas, a PF abriu um inquérito para apurar se eles corromperam assessores dos gabinetes de quatro ministros: Isabel Gallotti, Nancy Andrighi, Og Fernandes e Moura Ribeiro. Na ocasião, o STJ afastou os servidores investigados e disse ter tomado providências para apurar os fatos. De acordo com a assessoria do tribunal, os processos administrativos ainda estão em andamento e não há prazo para conclusão.
Até aquele momento, a PF não havia encontrado nenhum indício direto de relacionamento dos personagens investigados com ministros ou parentes de ministros. Esses vínculos só foram detectados mais recentemente, com a análise das provas apreendidas com o empresário Haroldo Augusto Filho.
Ministro se declarou suspeito em inquérito
A OAB de Mato Grosso organizou, entre os dias 10 e 12 de abril de 2024, um evento sobre falências e recuperação judicial. Uma das empresas patrocinadoras era a Fource. O ministro do STJ João Otávio Noronha foi um dos convidados –outros ministros da Corte também foram chamados para o evento.
Documentos da empresa Fource indicaram que Noronha voou a Cuiabá, na ocasião, em uma aeronave particular cedida por Haroldo. A PF também detectou diálogos de Haroldo com uma filha do ministro, a advogada Anna Carolina Noronha, que ainda estão sob análise.
Questionado, Noronha afirmou que já conhecia o empresário Haroldo Augusto Filho porque ele havia comparecido ao seu gabinete em Brasília para um despacho com um advogado, mas disse que a aeronave foi disponibilizada pela organização do evento.
“Não fui só eu. Teve um evento da OAB, a OAB colocou um avião para nos levar e nos trazer. Eu sequer sabia que ele era dono de avião, embora já conhecesse o Haroldo, que já tinha despachado com alguém lá no STJ. Eu simplesmente entrei no avião, fui para Mato Grosso, fiz a palestra e voltei no outro dia, nada mais. E por indicação da OAB, que nos convidou, nos levou e arrumou tudo isso”, afirmou ao Estadão. A presidente da OAB de Mato Grosso, Gisela Cardoso, disse desconhecer a informação.
Noronha afirmou que foi acompanhado por outros ministros na viagem, mas disse não se recordar de quais. Ele afirmou não ter relação de amizade com Haroldo, mas disse que se declarou suspeito para conduzir o inquérito sobre a venda de decisões do Tribunal de Justiça de Mato Grosso por ter realizado esse voo no avião do empresário.
“Esse processo do Haroldo foi originalmente distribuído a mim e eu me dei por suspeito, exatamente porque eu tinha feito essa viagem”, disse Noronha.
Deu no Estadão