Cármen Lúcia fala em “213 milhões de pequenos tiranos” para justificar censura

(Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE)

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, repetiu no plenário da Corte, na quarta-feira, 25, sua fórmula de votar a favor da censura, dizendo-se contra censura.

“Censura é proibida constitucionalmente, é proibida eticamente, é proibida moralmente, é proibida eu diria até espiritualmente. MAS não [se] pode, também, permitir que nós estejamos numa ágora [praça pública] em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos. Soberano é o Brasil, soberano é o Direito brasileiro.”

Cármen Lúcia já havia usado essa fórmula (a do ‘cala a boca já morreu, mas veja bem…’) quando votou a favor da censura de um documentário bolsonarista, que seria publicado às vésperas da eleição de 2022 e que acabou tendo sua estreia adiada para depois do pleito por ordem do Tribunal Superior Eleitoral (TSE):

“Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”“MAS eu vejo isso como uma situação excepcionalíssima”.

A ministra não chegou, na ocasião, a incorrer em seu novo agravante: o de tratar “213 milhões” de habitantes – sim, a população total do Brasil, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – como “pequenos tiranos soberanos” que precisam ser contidos pelas mentes iluminadas do STF, cuja maioria diverge apenas em relação à amplitude da imposição de censura.

Eu, Felipe, só fiquei na dúvida se Cármen Lúcia incluiu os onze ministros do Supremo entre os “tiranos soberanos” que habitam o país; e se eles, então, seriam os grandes que – de vez “excepcionalíssima” em quando – retiram a liberdade de expressão dos “pequenos”, em nome da soberania do “Brasil” e do “Direito brasileiro”.

Para a ministra, cada cidadão tem o “direito de criticar”, o “direito de vaiar” e “tem, sim, o direito de xingar”, mas “não tem o direito de cercear e levar à morte das pessoas, das instituições e da democracia” – seja lá o que isso signifique nas interpretações subjetivas dos ministros do STF, que precisarão ser presumidas pelas novas ou reforçadas equipes de patrulha virtual das big techs.

Em 2019, por exemplo, Alexandre de Moraes censurou reportagem de Crusoé sobre o codinome de Dias Toffoli na Odebrecht (“o amigo do amigo do meu pai”), após Toffoli demandar ao relator “a devida apuração das mentiras recém-divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”. Se um conteúdo verdadeiro, mas incômodo para um ministro, é tratado como ataque à democracia, as plataformas também poderão ser responsabilizadas por mantê-lo publicado.

“Pode gritar ‘odeio a ministra Carmen Lúcia’; o que não pode é pegar um revólver e me matar na rua, isso não pode”, tentou exemplificar a própria ministra, embora o julgamento discuta não a responsabilização por assassinar alguém a tiros, mas por não retirar do ar publicações virtuais de usuários das redes quando qualquer pessoa pedir a remoção (e imagine quantos militantes irão se mobilizar para pedir), mesmo sem ordem judicial. Cármen Lúcia não fez a distinção, mas uma postagem que incite o assassinato contra uma pessoa específica, conquanto gravíssima e passível de processo por incitação ao crime, não puxa o gatilho de “revólver” algum.
Qualquer pessoa capaz de imaginar que ela própria ou seus filhos possam ser alvos de tal postagem entende que a preocupação em agilizar sua remoção é legítima, em razão do risco de que a incitação virtual leve algum fanático, louco ou delinquente a cometer o assassinato no mundo real. A cúpula do Poder Judiciário mais caro do mundo, porém, explora essa preocupação não só para transferir às big techs sua responsabilidade de avaliação e agilidade, mas também para legislar de modo vago, genérico e conveniente sobre diversas ocasiões em que as publicações teriam de ser consideradas ilícitas.
“É péssima a experiência que esse país teve com a moderação de conteúdos nos meios de comunicação”, lembrou Edson Fachin – que acompanhou André Mendonça na divergência –, referindo-se à época da ditadura militar: “corremos o risco de ver temerárias ações de investigações atingirem jornalistas e professores. E há experiência não muito longe”, disse o ministro, sem citar diretamente o caso da reportagem de Crusoé, cuja veracidade já foi atestada por ele próprio.

Fachin alertou para os “riscos que precisam ser ponderados a essa altura” da discussão, como “problemas para a pluralidade democrática na rede ou da rede” e “o controle dos discursos dos usuários”: “do ponto de vista da experiência e da literatura comparada, a adoção de controle de discurso dos usuários não faz parte do Estado Democrático de Direito. Basta observar o que se passa em alguns países.”

O ministro defendeu a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, tema formal do julgamento em questão. Esse dispositivo da lei 12.965 de 2014 diz o seguinte:

“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”

Para Fachin, o artigo 19 é constitucional, porque a necessidade de ordem judicial para se remover conteúdo gerado por terceiros parece-me ser a única forma constitucionalmente adequada de compatibilizar a liberdade de expressão com o regime de responsabilidade ulterior [posterior].”

Ainda segundo o ministro, “os remédios para os males da democracia precisam ser encontrados dentro da caixa de ferramentas da própria democracia”. Mesmo crendo ser necessária “uma regulação estrutural e sistêmica”, ele defendeu que esta seja feita “preferentemente não via Poder Judiciário”, já que legislar é atribuição do Legislativo.

Para respeitar a soberania do Direito, portanto, o voto de Fachin não precisou de contorcionismo, bravatas ufanistas, ou ofensas a 213 milhões de habitantes. O ministro simplesmente não deixou a vontade política prevalecer à Constituição e ao bom senso.

Método histórico de tiranos é atribuir tirania aos outros para justificar a própria.

Deu no ‘O Antagonista’

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