Moraes ignora revelações e transforma delação de Cid em fato intocável

Foto: Tom Molina

Ao decidir rejeitar o pedido de anulação da delação premiada de Mauro Cid, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), reforçou a percepção de que a colaboração do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) se tornou uma peça central — e até mesmo intocável — no processo que apura um suposto golpe de Estado.
Foi a segunda vez que a defesa do ex-presidente tentou anular a delação, dessa vez com base em mensagens trocadas entre Cid e um interlocutor no Instagram. A troca de mensagens indicaria que o delator mentiu durante interrogatório no Supremo, quando negou ter discutido os termos de sua colaboração com outras pessoas.
Uma reportagem da revista Veja, publicada na quinta-feira (12), revelou conversas entre o perfil @gabrielar702 e alguém próximo a Bolsonaro, entre os dias 29 de janeiro e 8 de março de 2024. O STF divulgou gravações que mostram Mauro Cid em contato com o advogado Eduardo Kuntz, defensor do coronel Marcelo Câmara.
Nesta quarta-feira (18), Moraes determinou a prisão preventiva de Marcelo Câmara, por tentativa de obstruir a investigação. Ele também decidiu instaurar um inquérito contra o militar e Kuntz pelas conversas com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

Apesar das novas revelações envolvendo Cid, Moraes classificou os pedidos da defesa de Bolsonaro como “irrelevantes, impertinentes ou protelatórios”.
Para o advogado criminalista André Viana, a decisão do ministro reflete o entendimento de que os recursos apresentados buscavam apenas adiar o andamento do processo.
A Lei 12.850/2013, que institui a colaboração premiada, prevê que o investigado deve fornecer informações úteis à investigação, recebendo em troca benefícios. No entanto, caso haja “omissão dolosa” — quando se omite intencionalmente fatos relevantes —, o juiz pode rescindir o acordo.

Aliados de Bolsonaro acusam Moraes de abuso de autoridade e blindagem a Mauro Cid
Nas redes sociais, aliados do ex-presidente criticaram a prisão de Marcelo Câmara. Para eles, a medida ignora denúncias graves sobre a delação de Mauro Cid e representa uma tentativa de silenciar críticas ao Supremo.
O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que a resposta da Meta confirmaria que Mauro Cid realmente conversava com o advogado Rafael Kuntz, revelando que nunca usou a palavra “golpe” em sua delação. Segundo ele, o foco deveria estar na gravidade dos diálogos, e não na punição de quem os revelou.
“Ao invés de considerar a gravidade dos diálogos, tratando de possível coação na delação e adulteração do depoimento de Cid, Moraes prefere prender o cliente de Kuntz, Cel Câmara, por supostamente ter usado seu advogado pra obter informações da delação”, criticou. “Olha o nível de loucura! Imputando a terceiros responsabilidade alheia”, completou.
O senador Eduardo Girão (Novo-CE) também criticou a decisão, classificando-a como uma demonstração de “vingança” por parte do STF. “Da série condene o mensageiro e ignore a mensagem. Está aí mais uma prova do espírito que move o STF: vingança pura!”.

Já o vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) foi direto ao apontar o que considera uma blindagem a Mauro Cid. “E o Cid ‘coitadinho’ segue intocável, ferrando todo mundo”, ironizou.
“Juridicamente, a delação seria anulada”, diz advogado
O advogado constitucionalista André Marsiglia avaliou que a delação de Mauro Cid deveria ser anulada, diante de violações claras cometidas pelo ex-ajudante de ordens. Segundo ele, o ministro Alexandre de Moraes evitou deliberadamente enfrentar o mérito da questão, optando por apreciar a forma como o pedido da defesa de Bolsonaro foi feito.
“Cid tanto mentiu quanto violou o sigilo. Ambas as coisas levam à rescisão ou anulação da delação”, afirmou Marsiglia. Para ele, Moraes optou por uma estratégia processual para não ter que tomar uma decisão mais contundente. “Como o Moraes ficou na forma, ele não entrou no mérito. Muitas vezes, isso a gente chama até de jurisprudência defensiva”, explicou.
Marsiglia sustenta que o ministro se escorou em aspectos formais para evitar o exame dos fatos. “O Moraes está se escudando num aspecto formal, mas ignorando a análise. Nem é o fato em si, ele está ignorando o exame do fato que mostra que é realmente intocável”, criticou.

Na visão do advogado, a decisão de Moraes não se sustenta juridicamente. “Não é mais uma questão jurídica. Juridicamente, isso seria anulado. Mas, do ponto de vista político, me parece mais razoável dizer que é intocável. Estão questionando, mas ele [Moraes] ignora”, ressaltou.
Como foi feita a delação premiada de Cid
A delação premiada de Cid foi homologada por Moraes em setembro de 2023. O acordo foi firmado com a Polícia Federal enquanto Cid estava preso preventivamente desde maio daquele ano, no âmbito da investigação que apurava a inserção de dados falsos em sistemas do Ministério da Saúde para simular a vacinação contra a Covid-19.
A colaboração premiada é um instrumento jurídico previsto na Lei 12.850/2013, que trata das organizações criminosas. Por meio dela, o investigado se compromete a fornecer informações relevantes e comprováveis que contribuam para o avanço das investigações.
Em troca, pode receber benefícios como a redução da pena, substituição por medidas alternativas ou até mesmo o perdão judicial — desde que os dados apresentados levem a resultados concretos, como a identificação de outros envolvidos, a revelação da estrutura da organização criminosa, a recuperação de ativos ou a prevenção de novos crimes.

Omissão e retificações marcam delações de Cid
Esta não é a primeira vez que o depoimento de Cid é colocado à prova contra novas revelações do processo. O primeiro questionamento ocorreu em março do ano passado, quando a revista Veja revelou áudios em que Cid acusa investigadores e Moraes de terem cometido irregularidades na condução da delação premiada.
“Eles já estão com a narrativa pronta. Eles não queriam saber a verdade, eles queriam que eu confirmasse a narrativa deles. Entendeu?”, afirmou Cid. Ao ser convocado para prestar depoimento, o militar disse que as afirmações seriam um “desabafo em um momento ruim”. Apesar dos protestos da defesa de Bolsonaro, Moraes manteve o acordo de delação de Cid.
Em novembro do mesmo ano, a Polícia Federal chegou a declarar que o tenente-coronel descumpriu os termos do acordo por não prestar informações. Segundo a corporação, dados recuperados de aparelhos de Cid cruzados com os de aparelhos apreendidos de outros investigados indicariam a existência de um plano para sequestrar e até assassinar Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e Moraes, que na época era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Novamente, o acordo permaneceu.
Em resposta, a defesa de Cid disse que ele não tinha qualquer conhecimento sobre o planejamento de ações violentas.
Ao prestar um novo depoimento sobre o suposto plano de golpe de Estado, em fevereiro deste ano, Cid chegou a mudar sua versão sobre o ocorrido após Moraes ameaçar prendê-lo. Durante o depoimento, Cid relatou uma reunião que teria sido realizada na casa do ex-ministro e general da reserva Walter Braga Netto no dia 12 de novembro de 2022.

Segundo ele, na reunião “se discutiu novamente a necessidade de ações que mobilizassem as massas populares e gerassem caos social, permitindo, assim, que o presidente [Bolsonaro] assinasse o estado de defesa, estado de sítio ou algo semelhante”.
Na primeira versão, Cid disse que o encontro foi realizado apenas para que militares tirassem fotos com Bolsonaro e Braga Netto. Os militares que teriam pedido fotos eram os tenentes-coronéis Rafael de Oliveira e Hélio Ferreira Lima, ligados aos chamados “kids pretos”, presos durante a Operação Contragolpe, em 19 de novembro de 2024.
“Em qual versão devemos acreditar? Na ausência de voluntariedade ou no suposto desabafo? Como confiar num delator que desacredita sua própria delação?”, questionaram os advogados de Bolsonaro ao entregar a defesa à denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente.
Os próprios ministros do Supremo demonstraram desconforto com a situação da delação de Mauro Cid. Durante a sessão que discutiu o pedido feito pelos advogados dos denunciados para anular a delação de Cid, em 25 de março, o ministro Luiz Fux.

“Vejo com muita reserva nove delações de um mesmo colaborador, cada hora acrescentando uma novidade. Mas me reservo a analisar ilegalidade ou ineficácia dessa delação no momento específico”, disse o ministro.

Deu na Gazeta do Povo

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