Hoje, Código Civil não permite retirar o marido ou a esposa do direito à herança
O projeto de reforma do Código Civil abre possibilidade para que o homem ou a mulher deixe o companheiro fora do testamento para receber herança —o que não é possível atualmente.
O que aconteceu
Hoje, o Código Civil não permite retirar o marido ou a esposa do direito à herança no testamento. Essa proibição passa pelo conceito de “herdeiros necessários”, que engloba, além do cônjuge, os ascendentes, que são pais, avós, bisavós e assim por diante, e descendentes, que são os filhos, netos, bisnetos e assim por diante.
Uma pessoa pode, em vida, deixar testamento para doar 50% do patrimônio para uma instituição, por exemplo. O restante, neste caso, precisa ficar para os herdeiros —incluindo o cônjuge—, o que é conhecido como “legítima” nas normas legais.
Contudo, a reforma pode tirar o cônjuge dos herdeiros necessários, segundo o artigo 1.845 do projeto. “São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes”, diz, sem citar os cônjuges.
Responsável pelo testamento pode deixar o cônjuge de fora da herança. “Para excluir da herança o cônjuge, o convivente, ou os herdeiros colaterais, basta que o testador o faça expressamente ou disponha de seu patrimônio sem os contemplar”, afirma o artigo 1.850 da proposta.
Em uma possível nova configuração, toda herança pode ser doada, mesmo se a única pessoa da família for o cônjuge, explica advogado. Na lei atual, isso não é possível. “Pelo novo Código, posso doar meu patrimônio, e meu companheiro ficar sem nada”, diz Ilmar Muniz, da Cavalcante Muniz Advogados.
Muniz explica que, atualmente, só é possível tirar os herdeiros necessários do direito à herança em situações específicas. No caso de Suzane Von Richtofen, por exemplo, Andreas Von Richtofen, irmão dela, se tornou único herdeiro dos pais depois que a filha foi condenada a 40 anos de prisão pelo assassinato do casal.
Pela lei atual, só é possível deserdar um herdeiro necessário por indignidade. São considerados indignos e excluídos da herança os herdeiros envolvidos em homicídio (ou tentativa) do autor da herança, acusação caluniosa também contra o autor da herança ou nos casos em que o herdeiro impede, por violência ou fraude, o acesso do autor da herança a seus bens.
Na falta de testamento, vale a sucessão legítima, que é composta por descendentes, ascendentes, cônjuge e colaterais. A reforma não prevê alteração nesse ponto, seguindo na mesma ordem: descendentes, ascendentes, cônjuge e colaterais.
Cônjuge pode ficar com toda herança se não houver nenhum descendente ou ascendente, segundo o artigo 1.838 da proposta. “Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente.”
Proposta precisa de mais discussão, defendem especialistas
A presidente da Comissão de Advocacia de Família e Sucessões da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Silvia Felipe Marzagão, criticou a proposta. “É um texto feito muito rápido, com poucos debates. A retirada do cônjuge como herdeiro necessário é uma das principais mudanças”, disse.
Aprovação de mudança na herança “implicaria em diversos problemas”, critica Muniz. “Já está sendo motivo de grande debate. Não vai passar no formato que está. Se eu quiser contemplar o companheiro na herança, vou ter que contemplá-lo, exclusivamente, em testamento.”
Contudo, poucas pessoas fazem testamento no Brasil, ressalta Muniz. Segundo o relatório Cartório em Números, de 2024, o número de testamentos registrados entre 2007 e setembro de 2024 foi de 527 mil.
Marzagão aponta que o texto coloca outros elementos subjetivos na parte de herança, como herdeiros vulneráveis ou hipossuficientes. Segundo a proposta, o responsável poderá destinar até um quarto da herança a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes.
Segundo a proposta, o responsável poderá destinar até um quarto da herança a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes. “O que é alguém hipossuficiente”, questiona. “Vai ter uma interferência maior do Judiciário.”
Ainda em fase inicial de tramitação, projeto certamente passará por alterações, diz especialista. “Ainda é difícil avaliar se a mudança será positiva ou negativa porque, como é um projeto de lei, ele pode sofrer muitas alterações, inclusive ser reescrito em boa parte”, opina Francisco Gomes Junior, sócio da OGF Advogados e presidente da ADDP (Associação de Defesa de Dados Pessoais e Consumidor).
“Alterar praticamente todo o Código Civil é uma mudança um tanto quanto agressiva.”
Novo Código Civil
Proposta de reforma do Código Civil foi elaborada por comissão de 38 juristas, segundo o STJ (Superior Tribunal de Justiça). O colegiado teve a participação dos ministros do STJ João Otávio de Noronha, Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze, além do ministro aposentado Cesar Asfor Rocha.
Comissão foi criada pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), quando ele ainda era presidente do Senado. A presidência da comissão ficou a cargo do ministro Luís Felipe Salomão, vice-presidente do STJ.
Juristas propuseram a alteração de 1.122 dos 2.046 artigos da versão atual da lei. Além disso, o projeto acrescenta mais de 200 dispositivos ao código.
Tramitação da proposta, já protocolada no Senado, deve começar com a criação de uma comissão especial. Contudo, o UOL apurou que não há prazo para o colegiado ser criado e instalado.
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A comissão especial é a primeira etapa de tramitação. Uma vez aprovado lá, o projeto deve percorrer as comissões permanentes, como a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), para depois chegar ao plenário.
Deu no UOL