Do total de 8,3 mil médicos, 5.740 estão na capital. Enquanto isso, no interior, são apenas 2,6 mil profissionais para atender à população| Foto: Magnus Nascimeno
A necessidade de percorrer longas distâncias por atendimento médico e a demora para conseguir realizar um exame refletem uma centralização marcante no Rio Grande do Norte. No Estado, quase 70% dos médicos estão concentrados em Natal. Em números absolutos, do total de 8,3 mil profissionais presentes no território potiguar, 5.740 estão na capital. Enquanto isso, no interior, são apenas 2,6 mil profissionais para atender a população. Na avaliação de entidades médicas ouvidas pela reportagem da TRIBUNA DO NORTE, os dados revelam a desvalorização profissional e as lacunas na infraestrutura em saúde no Estado. O resultado disso é a fragilização na assistência especializada e o comprometimento do orçamento público em cidades menores.
Os dados são do último relatório Demografia Médica no Brasil, realizado com base no ano de 2024, que aponta uma alta centralização dos médicos em todas as capitais do Brasil. Em Natal, são 7,31 profissionais para cada mil habitantes, superando a média das capitais brasileiras de 6,97, enquanto nas cidades do interior potiguar a taxa é de 0,98.
A presidente do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Norte (Cosems/RN), Maria Eliza Garcia, esclarece que a concentração dos profissionais médicos em Natal impacta significativamente a assistência na média e alta complexidade em municípios menores. Ela reconhece, por outro lado, que os serviços na Atenção Primária à Saúde (APS) têm ganhado um destaque melhor em cidades pequenas.
Dos 167 municípios potiguares, 104 contam com menos de 10 mil habitantes e apresentam 100% na cobertura de APS, realidade que não se reflete em Natal. Na área de cirurgias, ela cita que a realização de procedimentos mais simples em algumas cidades e o Programa Nacional de Redução das Filas de Cirurgias Eletivas, Exames Complementares e Consultas Especializadas (PNRF) tem auxiliado na regulação dos pacientes do interior.
O cenário, contudo, não exclui os vazios do tratamento especializado. “Quando parte para a média complexidade, acontece a dificuldade para os interiores. Como a concentração é maior na capital ou nos grandes centros, como Mossoró e Caicó, existe um fluxo muito grande de pessoas se deslocando das suas cidades para buscar essa atenção especializada”, aponta Maria Eliza Garcia.
Algumas áreas como a oncologia, por exemplo, representam um dos maiores gargalos no interior potiguar. Pela Lei nº 13.896/2019, conhecida como “Lei dos 30 dias”, pacientes com suspeita de câncer no Sistema Único de Saúde (SUS) têm direito à realização de exames diagnósticos em até 30 dias. Na prática, segundo a presidente do Cosems/RN, isso não acontece e resulta tanto no surgimento de uma demanda reprimida quanto na redução das chances de cura dos pacientes.
Ela explica que atualmente a assistência oncológica está concentrada em Natal, Mossoró e Caicó. Na capital potiguar, especialmente, a Liga Contra o Câncer absorve a maior demanda. “Não temos isso com facilidade em outras regiões. Na 6ª região, a mais distante, os pacientes precisam ir a Mossoró ou Natal para esse atendimento. Então isso também é um dos fatores que concentram um número tão alto de médicos nos grandes centros”, completa.
Segundo dados da Secretaria de Saúde Pública do Estado (Sesap/RN), cedidos à reportagem da TRIBUNA DO NORTE, 72% dos médicos servidores da rede estadual de saúde estão concentrados na 7ª região de saúde (Metropolitana). Em números absolutos, são 1.011 do total de 1.401 profissionais. Nas demais regiões, o segundo maior total é identificado na 2ª região (Oeste), com 157. Na sequência, aparecem a 4ª (Seridó) e 6ª (Alto Oeste), ambas com 56; 1ª (Agreste), com 43; 8ª (Vale do Açu), com 16; e 3ª (Mato Grande) e 5ª (Trairi) com 4.
A pasta reforça que há uma força complementar de profissionais vinculados por meio de empresas e/ou cooperativas contratadas para suporte na assistência em todas as regiões. Apesar disso, muitos municípios ainda precisam ampliar os investimentos em saúde para conseguir suprir a demanda de algumas especialidades médicas. Um exemplo, cita Maria Eliza Garcia, é a realização de convênios pelas prefeituras para suprir a assistência oncológica.
“Enquanto os municípios hoje investem em torno de 20 a 35 % na saúde, o Estado do Rio Grande do Norte é o último estado do Nordeste em investimentos. Ele deveria investir no mínimo 12% e só investe 12%. Os municípios deveriam investir no mínimo apenas 15%, mas todos investem acima de 20%, pois precisam absorver, por exemplo, um paciente de oncologia que está em Natal”, ressalta.
O cenário é observado, por exemplo, em Lagoa D’Anta, a cerca de 124 km de Natal e com pouco mais de 6 mil habitantes. De acordo com dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), a Prefeitura do município investiu 32,35% da receita municipal na saúde em 2024. Desde 2013, início da série histórica, os percentuais têm se mantido entre 21,28% e 32%.
O secretário de saúde de Lagoa D’Anta, Altair Gomes, aponta que o principal fator para esse cenário é a necessidade de contratação de médicos especializados para atender a demanda local. Isso porque a regulação dos pacientes de urgência e emergência nos hospitais de referência em Natal ainda demora a ocorrer. “Uma tomografia e uma ressonância leva meses para sair. Quando o médico da UBS avalia que o paciente está com suspeita de câncer, ou seja, um paciente oncológico, por exemplo, temos que pagar o exame”.
No atendimento oncológico, ele cita que a alternativa tem sido transferir os pacientes para a Liga Contra o Câncer e para o Hospital Rio Grande, com o qual foi estabelecida uma parceria. “Sem falar da hemodiálise, que é outro desafio para o município, que precisamos encaminhar para Santa Cruz e Natal”, completa.
Desafios para interiorização
Além dos impactos na assistência, a desigualdade na distribuição de médicos reflete um outro problema: a falta de equidade nas condições de trabalho no Estado. Na avaliação de Maria Eliza Garcia, as melhores condições de trabalho e as oportunidades de qualificação nas capitais estão entre os fatores que dificultam a interiorização dos profissionais.
O médico Marcos Jácome, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte (Cremern), compartilha a mesma perspectiva e defende a necessidade de um planejamento estruturado nas esferas federal, estadual e municipal. Na avaliação dele, não basta abrir mais vagas nos cursos de medicina do Estado, mas sim investir em políticas estruturantes que favoreçam a real fixação e melhor distribuição dos profissionais.
Ele também reforça a necessidade de maior atenção à infraestrutura na saúde, tendo em vista que a qualidade do exercício médico depende da disponibilidade de insumos, suporte diagnóstico e equipes multidisciplinares. “O CREMERN tem reiterado a importância de se investir em políticas estruturantes, que incluam concursos públicos, valorização do trabalho médico e melhoria das condições de atuação em todos os municípios do Estado, inclusive nos menores e mais remotos. Evitando, desta forma, os temíveis vazios assistenciais”.
O presidente do Sindicato dos Médicos do Estado (Sinmed/RN), Geraldo Ferreira, ressalta que a concentração médica em Natal reflete uma realidade nacional. Especialmente no Rio Grande Norte, ele cita que a falta de estruturas hospitalares resolutivas, ausência de interesse das prefeituras em ampliar equipes de saúde da família e promover concursos públicos, além da terceirização da profissão, favorecem a baixa fixação dos médicos no interior. “É preciso que o poder público desenvolva uma carreira, com interiorização, para que a gente possa permitir essa fixação”, defende.
Ele avalia ser difícil, por exemplo, manter profissionais como cirurgiões e anestesiologistas em cidades do interior pela falta de estrutura hospitalar. Na maioria dos casos, os médicos se deslocam pontualmente para realizar um atendimento em um município menor e voltam para a cidade polo. Em todo o Rio Grande do Norte, segundo dados do Demografia Médica no Brasil, há 465 cirurgiões gerais, com uma taxa de 14,08 para 100 mil hab. Já em relação ao número de anestesiologistas, são 405, com uma razão de 12,26.
”É claro que algumas especialidades como oncologia, neurocirurgia e cirurgia cardíaca, ficarão restritas a centros maiores. Mas a parte de cirurgia ginecológica, geral, a ortopédica de baixa complexidade, além da cirurgia vascular de média e baixa complexidade, podem ser assistidas em cidades de médio a pequeno porte, desde que haja interesse público de abrir unidades hospitalares, que permitam diagnóstico e os procedimentos cirúrgicos”, complementa Geraldo Ferreira.
Soluções em curso
Para o presidente do Sinmed/RN, há uma dificuldade para estabelecer diálogos tanto com o Governo do Estado quanto com as prefeituras. De um lado, aponta, o Governo prefere concentrar os hospitais em cidades polos, do outro, as prefeituras têm estimulado uma terceirização “descontrolada”. “Há muita incompreensão do poder público, não só estadual, mas também municipal, entre o que pensam as entidades médicas sobre assistência à população e o que eles se propõem a oferecer”.
A Sesap, por sua vez, destaca que o atual concurso público da pasta, com prova prevista para o dia 25 de maio, foi pensado para reduzir a disparidade na distribuição de médicos entre Natal e os municípios do interior do estado.
Deu na Tribuna do Norte