O diretor administrativo da Central de Aulas da UFPB é acusado de transfobia por um trans que usou o banheiro feminino da instituição. (Foto: Angelica Gouveia / UFPB)
No começo da tarde de 14 de outubro de 2022, uma sexta-feira, Adripaulo Barros, diretor administrativo da Central de Aulas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), recebeu em sua sala duas pessoas que entraram apressadas: uma estudante trans, acompanhada de uma funcionária da empresa terceirizada que cuidava da manutenção das instalações. A trans queria registrar uma queixa: a profissional teria restringido o acesso ao banheiro feminino.
“Entraram na minha sala, onde conversei calmamente. Percebi que a pessoa não havia deixado de utilizar o banheiro, apenas tinha sido questionada a respeito da escolha. A funcionária permaneceu à espera do lado de fora. Era um rapaz, que em nada parecia uma mulher, a não ser pelo uso de um top e de uma bermuda curta”, relata Barros, que tem 59 anos e há 40 é funcionário da UFPB, especializado em segurança e desde 2013 no cargo de diretor, a partir do qual monitora a integridade física dos seis mil alunos que frequentam o local diariamente.
A conversa durou menos de cinco minutos, segundo Barros. “Ele queria saber quem tinha orientado a funcionária a questionar sua presença em um banheiro feminino. Respondi que fui eu, porque preciso cuidar dos ambientes da universidade, para evitar possíveis casos de abuso. Pedi a identificação social que o define como mulher, ele respondeu que não tem, nem precisa. Começou a levantar a voz. Eu disse: ‘Se acalma, moço’. Ele então começou a gritar: ‘Você está confirmando o crime de transfobia!’. E eu respondi: ‘Mulher o senhor não é’. Tenho respeito pelas decisões das pessoas, mesmo que não concorde com elas. Mas preciso zelar pela segurança das mulheres que frequentam nosso espaço.”
Medo nos banheiros
Enquanto a estudante trans saía pela sala, gritando que havia sido vítima de preconceito, o diretor administrativo e a funcionária retomavam suas atividades. À noite, quando os dois já tinham ido embora, aconteceu uma manifestação em torno da sala da Central de Aulas. O acontecimento foi filmado e fotografado: aos gritos, estudantes picharam as paredes da área externa com os dizeres “Travestys ocupando tudo.” E chegaram perto de quebrar a porta de uma sala onde dois funcionários, assustados, haviam se escondido. “Soube que eles gritaram: ‘Você vai entrar na linha’. Fiquei pensando como pretendiam me colocar na linha. De madrugada, não vi minha esposa na cama. Estava na sala, chorando, assustada”, relata o diretor.
O incidente foi levado ao comitê de ética da universidade, que inocentou Adripaulo Barros. “Coloquei meu cargo à disposição, não aceitaram me dispensar. A maior parte dos alunos continua me tratando da mesma forma. O que acontece é que uma minoria barulhenta causa pânico entre os demais”, diz ele.
A funcionária acabaria sendo demitida. Em dezembro de 2023, o Conselho Universitário (CONSUNI) da UFPB aprovou uma resolução que permite o uso de banheiros e outros espaços de acordo com a identidade de gênero autodeclarada. “A estudante trans já havia usado o banheiro feminino antes, e seguiu usando depois. O que vem acontecendo é que, como eu ouço nas conversas de corredores, as mulheres estão com medo de entrar nestes espaços e não querem fazer críticas ou denúncias por medo de sofrer retaliações”, diz o diretor.
Procurada, a universidade não retornou o pedido de entrevista. Quanto a Barros e à funcionária, que foi contactada pela reportagem mas solicitou que seu nome não fosse divulgado, no próximo dia 12 vão responder à acusação de transfobia diante da Justiça Federal. Ambos estão sujeitos a pena de multa e reclusão de um a três anos.
Defesa x acusação
A acusação foi encaminhada pelo Ministério Público Federal, que informou por email que rafiticou a denúncia do Ministério Público do Estado da Paraíba. Quando a acusação foi aceita, o órgão emitiu uma nota sobre o caso.
O texto afirma: “Segundo a denúncia, a funcionária teria impedido a estudante de utilizar o banheiro sob alegação de que ela seria ‘um homem’ e, posteriormente, a vítima foi levada à Sala da Administração, onde o diretor teria exigido que apresentasse documentação que comprovasse seu gênero. Para o MPF, a situação configura os crimes previstos no Artigo 140, § 3.º do Código Penal e no Artigo 20 da Lei n.º 7.716/89, classificados como racismo em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero”, relata a nota.
“A conduta dos réus, em nenhum momento, foi motivada por preconceito ou discriminação. Os funcionários atuaram estritamente no exercício regular de suas funções, cumprindo com suas obrigações legais e as normas de conduta social inerentes às suas atividades”, alega Aída Souza, advogada criminalista que defende tanto o diretor quanto a ex-funcionária.
“A separação dos banheiros por sexo tem como finalidade a proteção de grupos vulneráveis, em especial mulheres e crianças, contra potenciais situações de violência ou constrangimento, para garantia da segurança e preservação da integridade física e moral desses grupos. As condutas do diretor e da funcionária, longe de configurar qualquer forma de discriminação, visaram assegurar um ambiente protegido e adequado na universidade, respeitando e tratando a estudante trans a todo momento com a dignidade que lhe é devida.”
Para a advogada, as discussões sobre a aplicação irrestrita de políticas relacionadas à ideologia de gênero e seus reflexos nos direitos das mulheres transcendem a esfera jurídica e se inserem no campo político. “A atuação do Ministério Público Federal, assim como outras instituições e instâncias do poder público, tem se alinhado às demandas do movimento transativista, sem, contudo, promover uma análise crítica prévia e aprofundada sobre os possíveis impactos dessas políticas em outros grupos vulneráveis. O resultado é o que se tem visto: a perseguição judicial de trabalhadores.”
O impacto para a vida social dos acusados é grande, diz Souza. “A ação penal gera impactos negativos significativos em todas as esferas da vida dos acusados. Dentre esses impactos, destacam-se os efeitos decorrentes do estigma social, que se refletem direta ou indiretamente nas relações de trabalho, além de causar abalos psicológicos de considerável gravidade. No caso em questão, a funcionária envolvida foi desligada da empresa terceirizada após o incidente. Embora não seja possível estabelecer uma relação de causalidade direta entre o fato e a rescisão do contrato, há indícios que sugerem uma possível conexão entre os eventos.”
Indiciamento na PF
A Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil (Matria) tem prestado apoio aos acusados. A alegação de que houve crime se sustenta? “Não, até porque a definição do que é transfobia inexiste. O diretor fez o que é seu papel: garantir a segurança e dignidade de mulheres e meninas no uso de um espaço que é de amplo consenso que deve ser separado por sexo”, responde Celina Larrazi, diretora da organização.
Outros casos se sucedem, ela afirma. “Um caso bastante famoso ficou conhecido como o do ‘barbudo da UnB’. Em 2022, uma pessoa do sexo masculino que se chama de Brigitte foi questionado por uma aluna por estar usando o banheiro feminino. A figura com barba fechada e com musculatura forte gritou com a aluna: ‘não tem nada que me impeça de meter a mão na tua cara’. A estudante teve que ser escoltada para sua segurança por um senhor que presenciava a cena”. Outros casos estão citados no site da entidade.
A reportagem não conseguiu localizar a estudante trans, que na época exercia um cargo na direção da Diretório Central dos Estudantes (DCE) – que foi procurado, mas não se manifestou. De acordo com o reitor da instituição à época, Valdiney Veloso Gouveia, a estudante trans respondeu a processos internos na UFPB.
“As representações na Polícia Federal e os processos no contexto da universidade ocorreram, principalmente, por presumíveis crimes de honra, como calúnia, difamação e injúria de servidor público (no meu caso, reitor) no exercício de seu cargo”, informa. “Houve, por parte da mencionada pessoa, ação que envolveu atos de agressão e cerceamento de liberdade do reitor. A PF já indiciou a jovem em um dos processos.”
Na época, Gouveia era constantemente questionado por alunos e estudantes, por ter sido indicado como reitor pelo então presidente Jair Bolsonaro. “Jamais testemunhei qualquer preconceito em relação a jovem trans”, diz ele. Sobre a liberação do uso de banheiros independentemente do gênero nas instalações da universidade, afirma: “É uma decisão do CONSUNI, que é soberano. O tempo dirá se foi ou não acertada”.
Deu na Gazeta do Povo