Bets tiraram até R$ 3 bilhões do varejo potiguar em 2024, diz CNC

Famílias chegaram a destinar até 40% de seus orçamentos às apostas, deixando de adquirir itens básicos| FOTO: ALEX RÉGIS

O comércio varejista do Rio Grande do Norte deixou de faturar até R$ 3,2 bilhões em 2024 devido ao impacto das apostas online, segundo estudo divulgado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). O estudo mostra que as apostas esportivas geraram uma perda total de até R$ 103 bilhões no varejo nacional, com dois cenários simulados: um mais conservador, de R$ 24 bilhões, e outro extremo, de R$ 240 bilhões. No cenário mais conservador, o valor que o RN deixou de movimentar foi de R$ 301 milhões. Já no cenário mais pessimista o impacto pode chegar a R$ 3,2 bilhões.

De acordo com Felipe Tavares, economista-chefe da CNC, o cálculo do impacto financeiro foi realizado a partir de um modelo matemático e estatístico. “Analisamos variáveis como renda das famílias, crédito e crescimento econômico para determinar o potencial do varejo. Em seguida, comparamos esses dados com os números reais e identificamos um desvio, o que nos levou a concluir que o setor foi impactado pelas apostas online”, explica Tavares.

Além disso, o estudo utilizou informações do Banco Central, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e de instituições financeiras como Santander e Itaú para estabelecer os extremos do cenário econômico.

No Rio Grande do Norte, os efeitos das apostas online foram sentidos de forma intensa, especialmente entre as famílias de baixa renda. Dados da pesquisa mostram que, entre novembro de 2023 e novembro de 2024, o percentual de famílias com renda entre 3 e 5 salários mínimos que possuíam contas em atraso subiu de 26% para 29%. Em contrapartida, o grupo com renda entre 5 e 10 salários mínimos apresentou redução na inadimplência, indicando maior vulnerabilidade das classes mais baixas.

Helder Cavalcanti, economista e ex-presidente do Conselho Regional de Economia (Corecon-RN), destacou que esse cenário reflete diretamente no poder de consumo da população. “As famílias de baixa renda já enfrentam dificuldades para equilibrar as despesas. O comprometimento de parte da renda com apostas online as leva a deixar de pagar contas essenciais, como energia e água, o que impacta negativamente o comércio local”, afirma.

O setor de alimentos foi especialmente atingido, segundo Geraldo Paiva, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios do Rio Grande do Norte (SINCOVAGA). Ele relatou que famílias chegaram a destinar até 40% de seus orçamentos às apostas, deixando de adquirir itens básicos. “Esse comportamento não prejudica apenas as famílias, mas também os pequenos comerciantes, que dependem desse consumo para se manterem ativos no mercado”, afirma.

Além disso, Geraldo Paiva destacou o impacto social das apostas. “Muitos trabalhadores utilizam benefícios sociais, como o Bolsa Família, para jogar, gerando um ciclo de dívidas que desestrutura não só a economia, mas também as famílias. Temos relatos de funcionários pedindo adiantamentos ou abandonando seus empregos devido ao endividamento causado pelas bets”, completa.

Se as apostas online não existissem, o comércio varejista do Rio Grande do Norte poderia registrar um crescimento de até 15%, segundo Geraldo Paiva. “O dinheiro que hoje é gasto em apostas seria redirecionado para bens e serviços essenciais, como alimentos, vestuário e reforma de casas. Esse consumo adicional fortaleceria o setor varejista e daria maior estabilidade econômica às famílias”, afirmou.

Helder Cavalcanti reiterou que o maior desafio é evitar a inadimplência e proteger as famílias de baixa renda. “Medidas de regulamentação precisam vir acompanhadas de campanhas de conscientização e educação financeira para reduzir o impacto econômico e social desse fenômeno”, destacou o economista.

Além disso, a CNC defende que os recursos gerados pela arrecadação de impostos possam ser utilizados para financiar programas sociais e campanhas de conscientização. “A regulamentação deve ser robusta para evitar que o dinheiro das apostas online continue drenando o poder de compra das famílias brasileiras”, finalizou Tavares.

“Devo ter perdido R$ 15 mil”, diz apostador

João Paulo [nome fictício para a pessoa que não quis se identificar], de 45 anos, conta que começou a jogar no final do ano de 2023 e em menos de dois meses já estava viciado nas apostas esportivas. Os palpites começaram pequenos e quando João percebeu que estava ganhando, foi aumentando os valores, mas a partir desse momento, o azar alcançou o apostador.

“No começo, eu ganhava todos os jogos, e por conta disso aumentei os valores, mas aí eu fui perdendo. Só que mesmo assim eu continuava jogando. Pensei que se eu apostasse muito alto em um jogo certo, eu podia ganhar, aí teve uma vez que eu apostei R$ 3 mil e ganhei. Aumentei a aposta para R$7 mil em um time de mesmo nível, até porque a banca não tinha deixado eu sacar o dinheiro que eu tinha ganhado, por isso ia acumulando lá e eu também ia complementando. Devo ter perdido um total de R$ 15 mil”, relata.

Com o sentimento de derrota e sem dinheiro para manter a casa que morava em Parnamirim, João se mudou para a zona Norte de Natal. O dinheiro que ele perdeu nas bets, devia ser direcionado para os custos da casa, como aluguel, água, luz e alimentação. Entretanto, ele precisou priorizar algumas contas e deixar outras em segundo plano para quando conseguisse o dinheiro para quitar. Apesar disso, ele conseguiu superar o vício nos jogos de azar e agora empreende com vendas de frutas no seu comércio local.

Igor Monteiro, de 26 anos, afirmou que era um apostador assíduo, no entanto, não chegou a ficar viciado no entretenimento. Apesar disso, viu colegas próximos arruinarem suas vidas pela vontade de ganhar mais. “Sempre ouvi os relatos das pessoas dizendo que estavam fazendo apostas altas e que das primeiras vezes até ganhavam, mas depois a banca mudava e a pessoa perdia mais de R$ 10 mil”, relembra.

Regulamentação
A CNC defendeu no estudo a adoção de medidas regulatórias para mitigar os impactos das apostas online. Entre as propostas estão o estabelecimento de limites de apostas, criação de programas de conscientização pública e tratamento para viciados.

Segundo Felipe Tavares, a regulamentação é necessária não apenas para arrecadar impostos, mas também para reduzir os danos sociais e econômicos. “Outros países, como Estados Unidos e Reino Unido, possuem sistemas que permitem aos apostadores se autoproibir de jogar, além de regularem de forma rígida as atividades de apostas. Essa estrutura poderia ser adotada no Brasil”, explica.

A CNC também reiterou sua posição favorável à regulamentação de cassinos físicos, destacando que, diferentemente das apostas online, esses estabelecimentos promovem geração de emprego e desenvolvimento econômico local. “Cassinos presenciais demandam infraestrutura e criam empregos diretos e indiretos, enquanto as apostas online drenam recursos das famílias sem gerar contrapartidas significativas”, conta Tavares.

Deu na Tribuna do Norte

 

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